Paraíba

OPINIÃO

"Dia do Orgulho Hétero" na Paraíba e a falsa simetria LGBTfóbica bolsonarista na ALPB

"Em 2021, o NE foi a região onde mais LGBTs+ tiveram morte violenta, pergunto: a que(m)serve um dia do orgulho hétero?"

Brasil de Fato PB| João Pessoa |
"A heterossexualidade vem se desenhando há muito tempo na história como a natural" - Reprodução - Charge Arnaldo Branco

Por Luiz Gervázio Lopes Júnior

Em sessão na Assembleia Legislativa da Paraíba (ALPB), na manhã do dia 30 de maio de 2023, foi rejeitado o projeto de lei que instituiria o “Dia do orgulho hétero” de autoria do Deputado Estadual Walber Virgolino (PL). O projeto foi protocolado em novembro de 2021 e, curiosamente, o dito orgulho seria comemorado no dia 01 de novembro, dia de todos os santos. 

Desde o golpe político contra a presidenta eleita Dilma Roussef em 2016 temos presenciado, não sem luta, o desmonte das políticas públicas voltadas à inclusão de sujeitos historicamente minorizados, o fim do Conselho Nacional LGBT é apenas um dos vários ataques que caminham em direção ao aniquilamento de corpos LGBTQIAPN+ .

O Brasil ainda é o país que mais mata pessoas LGBTQIAPN+  no mundo, mais inclusive do que nos países em que é crime ser LGBTQIAPN+. O grupo Gay da Bahia há 40 anos desenvolve pesquisas e relatórios com base nos noticiários da mídia, ou seja, os dados coletados são apenas a ponta de uma profunda raiz de ódio e perseguição sofridos por pessoas dissidentes. Os dados analisados também apontam o Nordeste como a “região onde mais LGBTs+ tiveram mortes violentas, 35% dos casos” . O que nos leva a pergunta: a que(m) serve um dia do orgulho heterossexual?

A heterossexualidade é uma sexualidade assim como a homossexualidade ou a bissexualidade?

No corpo do projeto de lei, justifica o autor: “saliente-se que o Projeto em questão não incentiva qualquer tipo de preconceito, apenas trata de uma data comemorativa daqueles que possuem uma orientação sexual, a exemplo de outras que já existem.” A primeira vista parece um banalidade, sem importância, sendo assim, numa lógica rasa e superficial: se “y” tem orgulho, “x” também pode ter. Porém, longe de ser apenas mais uma sexualidade, a heterossexualidade vem se desenhando na história como única forma de existir no mundo, como regime de verdade que estruturou e estrutura nossa sociedade.

No livro A invenção da heterossexualidade o historiador Jonathan Ned Kats aponta que nem sempre o uso do termo “heterossexual” esteve relacionado diretamente ao normal, bom e saudável. Seu “primeiro uso conhecido da palavra heterossexual nos Estados Unidos ocorreu em um artigo do Dr. James G. Kiernan, publicado em um jornal de medicina de Chicago em maio de 1882” (KATS, 1996, p. 31). 

O sujeito dito heterossexual de Kiernan estava ligado a “manifestações anormais do apetite sexual” (KATS, 1996, p. 31), ou seja, inicialmente o heterossexual designava um degenerado, que não tinha controle de si mesmo. O prefixo hetero para kiernan não significava o desejo sexual pela pessoa do sexo oposto, mas a uma espécie de hermafroditismo psíquico, ao desejo por dois sexos diferentes. Essa teoria presumia que os sentimentos tinham e advinham de um sexo biológico. Esses heterossexuais também eram culpados pelos métodos anormais de ter prazer que não reproduziam a espécie ao mesmo tempo que também apresentavam o desejo normal pelo sexo.

Nesse mesmo artigo, Kiernan também designa o termo homossexual como “pessoas com um estado geral do sexo oposto” (KATS, 1996, p. 31), eram invertidos, contrários ao seu gênero, a própria masculinidade e feminilidade. Assim, este artigo também estreou o uso do termo “homossexual” na idade moderna. 

A heterossexualidade também foi estudada pelo professor de Psicologia e Psiquiatria Richard von Krafft-Ebing. Para o psiquiatra, o sujeito hetero-sexual (separado por hífen) possuiria um instinto sexual natural, biológico, enquanto o sujeito homo-sexual teria um desejo patológico, doente. É a partir desse momento então que a prática da sodomia vai deixando de ser percebida como uma prática sexual passível de pena para a criação do sujeito homossexual e consequentemente afeminado, desviante, invertido, doente e passível de cura para o dito natural e biológico que seria a heterossexualidade. 

A colonialidade faz o trabalho de importar, de promover o intercâmbio desses saberes médico-legais. Essas teorias europeias que sugeriam comportamentos sociais desviantes como desequilíbrios hormonais congênitos passam a ocupar território das universidades brasileiras. 
A partir de 1930 e 1940, aqui no Brasil, haverá um movimento de transição da figura do homossexual degenerado, praticante de um crime nitidamente tipificado, para o doente, medicalizado, anormal e consequentemente alvo do tratamento e da jurisdição médica. Gregório Marañón no prefácio do livro Homossexualismo e endocrinologia do brasileiro Leonídio Ribeiro reitera: “[...] o homossexual não deve ser tratado, a priori, como um delinquente. Um homossexual é um anormal [...]” (PEREIRA Apud MARAÑÓN, 1994, p. 93.) Essas discussões estarão no interior da Medicina que naquele momento era fortemente influenciada pela combinação de caráter biológico-organicista e pela psicanalise freudiana. Ribeiro propunha também um tratamento médico-pedagógico para solucionar o “problema essencial” com dois possíveis tratamentos: “educação e criação apropriadas – e [...] transplante de testículos” (GREEN, 2019, p. 225).

O Código Penal de 1890, da recente República brasileira, dispunha do Art. 266 que tipificava como atentado ao pudor as práticas entre sujeitos do mesmo sexo, a prisão poderia ser de um a seis anos, ou seja, a prisão de homossexuais não era tipificada, mas apoiada em outros dispositivos jurídicos como o atentado ao pudor ou a vadiagem, por exemplo.

Já em 1938, Francisco Campos, ministro da Justiça do Estado Novo, dá ao jurista e professor Alcântara Machado a tarefa de redigir um novo Código Penal condizente com os valores da Ditadura varguista. Uma proposta é redigida deixando, agora sim, explícita a prática homossexual, inclusive porque o título do capítulo chamava-se “Homossexualismo”, em seu artigo 258 tipificava o crime de homossexualismo com agravantes de território, faixa etária e outros (RIBEIRO, 2010, p. 509-510).

Essa foi a primeira vez, desde que o pecado da sodomia foi descriminalizado, em que estava explícita a criminalização da homossexualidade. Esse projeto no Código Penal foi lido com bons olhos pelos médicos e juristas, pois “constitui um passo à frente na solução do problema, pois prevê a hipótese da perícia médica, a fim de permitir ao Juiz a substituição da prisão pela internação, mostrando assim o grau de cultura de seus autores”. 

O artigo foi vetado da lista de propostas para o Código de 1940. Durante o Estado Novo Vargas dissolve o Congresso e aprova o novo Código por decreto. No entanto, os precedentes já estavam firmemente estabelecidos para permitir aos membros das famílias de homossexuais, justamente com médicos e psiquiatras, solicitar o confinamento de parentes envolvidos em atividades sexuais perversas em hospícios.
Existirão outras várias terapias testadas para curar a doença do homossexualismo. Mas é a partir da organização de homossexuais no Brasil em 1978 que se forma enfrentamento político, artístico e afetivo contra a patologização da homossexualidade, superada apenas no ano de 1993.

A falsa simetria lgbtfóbica bolsonarista 

Ainda em 2015, Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, desarquiva seus projetos de leis entre os quais dois chamam atenção: 1) dia do orgulho heterossexual a ser comemorado no terceiro domingo de dezembro; e, ainda mais preocupante, 2) “penalizará os estabelecimentos comerciais e industriais e demais entidades que, por atos de seus proprietários ou prepostos, discriminem pessoas em função de sua heterossexualidade ou contra elas adotem atos de coação ou violência.” 

Já aqui na Paraíba, durante a votação do projeto, o autor profere: “respeito os demais deputados, mas tenho orgulho de ser hétero”, numa nítida fala agitativa, que visa criar uma espécie de efeito manada de uma lógica sem fundamento. Muito mais do que a busca por uma proteção a sujeitos heterossexuais os projetos apresentados caminham em direção à criminalização de grupos e organizações LGBTQIAPN+, que se afirmam como diferentes à norma heterossexual.

Segundo o dicionário Aurélio o termo Orgulho significa “sentimento de satisfação com os seus próprios feitos e qualidades, ou com as realizações de outra pessoa”, ainda segundo o Aurélio, na segunda definição, “excesso de admiração que o indivíduo tem em relação a si próprio, baseado em suas próprias características, qualidades ou ações; arrogância”.

O orgulho das dissidências sexuais e de gênero, ou seja, de pessoas LGBTQIAPN+ me parece, em partes, fazer conexão com a primeira acepção do termo “orgulho”, enquanto que um “orgulho heterossexual” apenas deseja seu status de superioridade, de norma, de privilégio social, institucional e epistêmico. 

Sujeitos dissidentes têm se organizado na Paraíba desde o fim do ano de 1980, durante a distensão da Ditadura Militar. A primeira “Parada de Orgulho Gay da Paraíba” ocorreu em 2002, organizada pelo Movimento do Espírito Lilás (MEL). Desde então os mais diversos grupos tem se organizado e se afirmado, ressignificando as formas de sujeição, as lampadadas, os açoites, as expulsões de casa e o ódio. Choramos a perda dos nossos, que ousam ser quem são, enquanto marchamos em fileiras contra aqueles que insistem na violência do orgulho da supremacia heterossexual.


*SOBRE O AUTOR: Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande (PPGH – UFCG); graduado em História (UEPB); graduando em Pedagogia (UNIPÊ); secretário da Revista Acadêmica Eletrônica Discente Homos do PPGH-UFCG.


Referências
KATZ, Jonathan N. A invenção da heterossexualidade; tradução Clara Fernandes. – Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
PEREIRA, Carlos A. M. O direito de curar: homossexualidade e medicina legal no Brasil dos anos 30. In: HERSCHMANN, M.; PEREIRA, C. A invenção do brasil moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20 – 30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 88 – 129.
GREEN, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do Século XX; traduzido por Cristina Fino, Cássio Arantes Leite. – 2. ed. – São Paulo: Editora Unesp, 2019.

Edição: Polyanna Gomes