Diz a lenda que Raimundo Jacó era um vaqueiro fenomenal. Encantador de gado. Seu aboio era tão poético, sua voz tão bonita que o gado urrava, as árvores balançavam e até os pássaros dele se aproximavam para ouvir melhor.
O vaqueiro é um dos atores principais do processo de interiorização e ocupação do Nordeste. Figura emblemática, encerra em si, além da dureza, a persistência, a coragem, a fortaleza, a destreza e a adaptabilidade indispensáveis à vida no Sertão. A partir dos caminhos por ele abertos, na cadência do aboio cantando a própria sina, foi construída a civilização sertaneja ou a “civilização do couro”, como nominou o historiador cearense João Capistrano de Abreu (1853-1927) em alusão a sua indumentária de entrar no mato (chapéu, gibão, peitoral, luvas, perneira e botas), à medida que também de couro “era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagens, as bainhas de faca, as broacas e surrões (...)” (ABREU, 1988).
Sobre o vaqueiro e sua dura existência muito se disse, não se sabe se mais em verso ou em prosa. Para Euclides da Cunha (1866-1909) era “um condenado à vida”, envolvido em um combate sem tréguas fazendo-o “forte, esperto, resignado e prático”. Foi o vaqueiro “tendo sobre a cabeça, como ameaça perene, o sol” que forjou as condições necessárias aqueles/aquelas que de sol a sol enfrentaram a dureza do viver nos vastíssimos campos semiárido do Brasil. Uma gente moldada na tormenta da seca que sempre precisou recorrer ao apoio divino para continuar acreditando na vida, como nas preces tão bem dito nos versos cantados de Janduhi Finizola em Jesus Sertanejo: “De sol vou sofrer ou morrer/ E as pedras resplandem a dureza/ A pobreza desse chão/ João, um menino, um destino/ Ai nordestino, de arribação/ Cenário de dor e de calvário/ Ai muda a face desta provação”. E no apelo cantado do Quinteto Violado em Toada de gado: “oh... Vaqueiro do meu sertão/ Não despreze o teu gibão/ Nosso destino é marcado pela providência divina.”
A missa do vaqueiro de Serrita é uma dentre as inúmeras que acontecem por todo o Nordeste. Sem dúvida, entre todas, a mais famosa, não por ser a primeira, mas sim por todo um conjunto de aspectos e o principal deles é o homenageado: Raimundo Jacó. De acordo com o imaginário dos vaqueiros, Jacó era um “encantador de rebanho”. Diz a lenda que além de coragem, inteligência e uma habilidade com o laço inigualável, o mesmo tinha o poder de se comunicar com os bichos. As razões que em decorrência do despeito e da inveja que despertava levaram a seu traiçoeiro assassinado.
Foi com a intenção de denunciar o crime impune, 16 anos após a morte de Jacó, que o Padre João Câncio (1936-1989) rezou a primeira missa em sufrágio a sua morte. Nascia a Missa do Vaqueiro, era o terceiro domingo do mês de julho de 1970. O local escolhido para realizar a missa campal foi a cruz que marcava o lugar onde o corpo do vaqueiro foi encontrado. Também era intuito do Padre João, na sua “celebração da coragem”, denunciar a situação de miséria, a pobreza e todas as injustiças praticadas contra o povo sertanejo. E o Padre João, rezando a sua missa vestido de gibão, acompanhado do poeta Pedro Bandeira, do mestre Luiz Gonzaga (primo de Raimundo Jacó), cantadores, vaqueiros e fieis, deram origem a uma das principais festividades do Nordeste brasileiro.
Há 49 anos, no terceiro domingo do mês de julho, no Sítio Lajes, município de Serrita – alto Sertão de Pernambuco, vaqueiros das mais distintas partes continuam se reunindo para homenagear Raimundo Jacó (1912-1954) numa manifestação festiva religiosa chamada “Missa do Vaqueiro”. Apesar do nome Missa trata-se de uma festa que funde as tradicionais práticas sagradas e profanas da gente nordestina tornando-a uma expressão genuína do seu modo de ser e estar no mundo, contribuindo para preservar viva a fé e a cultura sertaneja.
Na programação dividida em três dias acontece de tudo um pouco: pega de boi no mato (vaquejada da missa), feira de produtos (agropecuário, máquinas, indumentária de couro, ...), shows e negócios. A missa propriamente dita acontece no último dia, o domingo.
A vaquerama vestida “de traje a rigor”, completamente encourada, no domingo bem cedinho se reúne no meio da caatinga a cerca de 2 km do local da missa, o Parque João Câncio. Após os ritos iniciais (algumas orações e aboios), enfileirados seguem em procissão, numa lenta cavalgada ao som dos chocalhos, berrantes e aboios sentidos e saudosos.
A missa é celebrada ao ar livre, frente a um altar em formato de ferradura. Assistido - do começo ao fim - pelos vaqueiros montados em seus cavalos, o ritual é totalmente adaptado. Ao som das músicas cantadas pelo Coral de Aboios de Serrita, os vaqueiros reafirmam sua fé, dirigem suas preces, fazem suas ofertas e - também montados em seus “cavalos” - comungam rapadura, queijo e farinha de mandioca (no lugar da hóstia sagrada).
Para a Missa do vaqueiro todos os anos rumam vaqueiros/as, aboiadores/as, poetas, cantadoras/es, repentistas, sanfoneiras/os, bacamarteiros, rezadeiras/es e benzedeiras/es, adivinhadores de chuva, ... a gente nordestina de raiz. A manifestação festiva religiosa hoje é espaço de resistência e memória; mesmo que nos últimos anos a música tradicional da região (a base da viola, sanfona, triângulo, zabumba, pandeiro e do pífano) venha perdendo espaço para outros estilos.
Apenas em 2013, muito tardiamente, é que a atividade do vaqueiro passou a ser reconhecida como profissão. De acordo com a lei instituída este profissional é aquele/aquela “apto a realizar práticas relacionadas ao trato, manejo e condução de espécies animais do tipo bovino, bubalino, equino, muar, caprino e ovino”. Dentre as suas funções estão desde alimentação dos animais sob os seus cuidados, o treino e preparação de animais para eventos culturais e socioesportivos cuidando para os mesmos não sejam submetidos a atos de violência. Mesmo assim, com o significativo papel exercido no processo de formação da gente brasileira, o bom vaqueiro nordestino continua a morrer sem deixar tostão e o seu nome é esquecido nas quebradas do Sertão – música “A morte do Vaqueiro” do mestre Luiz Gonzaga e Nelson Barbalho em homenagem a Raimundo Jacó.
E, já dizia João Guimarães Rosa (1908-1967): “Sertão é dentro da gente.”
Êhhhh... vida de gado, êh.
* Professora da UEPB/NEABI
Edição: Heloisa de Sousa