Em que pese toda a produção do arcabouço jurídico no âmbito da Política Urbana durante as últimas três décadas, a aplicação dos seus instrumentos não acompanhou o mesmo ritmo nas cidades. A criação da Lei N. 12.587 de 2012, que instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana, por exemplo, se revelou de maneira bastante diferente na maioria dos municípios brasileiros, em especial aqueles de pequeno e médio porte.
As cidades pequenas representam 5.037 unidades em todo território brasileiro. Aquelas com menos de 50.000 habitantes somam hoje, segundo o IBGE, 90,6% do número total de municípios do país. Apesar desse expressivo dado e dos estudos que se seguem até hoje, o que estamos acostumados a ver na academia, na mídia e na própria produção legislativa federal é uma atividade excessivamente voltada para entender e solucionar os problemas das cidades de médio e grande porte – ainda muito desproporcional se considerado o percentual do que elas representam para o território nacional.
Na Paraíba, exemplo que trataremos aqui, o IBGE mostra que 87% das cidades têm até 20.000 habitantes, portanto não são obrigadas de constituírem Planos Diretores. Essas pequenas cidades ainda são fadadas a dependerem de um controle da gestão da mobilidade e trânsito em nível estadual.
O Departamento Estadual de Trânsito da Paraíba (DETRAN-PB) não consegue atuar especificamente em cada cidade, configurando, assim, ausência de controle nos pequenos municípios. Conforme apontam dados do Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN), atualmente, apenas 32 dos 223 municípios paraibanos possuem o trânsito municipalizado. Tal dado implica não apenas na falta de gestão da mobilidade, mas alerta para o fato de faltarem políticas para este tema.
O Departamento de Estradas e Rodagens da Paraíba (DER-PB), órgão estadual rodoviário, é voltado essencialmente à infraestrutura e pouco ligado à gestão da mobilidade. Esse conflito colide com a concessão dos transportes intermunicipais, principalmente na Região Metropolitana de João Pessoa, onde o órgão não consegue controlar.
Assim, com a ausência de uma autoridade metropolitana, as administrações da gestão da mobilidade padecem de conflitos de interesses, sobreposição de linhas e rotas incoerentes com a demanda em escala metropolitana - o que termina por fazer surgir uma série de transportes clandestinos, comumente chamado de “complementares” ou “alternativos”.
O transporte público no conjunto das cidades paraibanas
João Pessoa e Campina Grande são as únicas cidades paraibanas que possuem transporte público municipal, cada uma com aproximadamente 800 e 400 mil habitantes, respectivamente. O transporte sobre trilhos conecta quatro municípios da Região Metropolitana da capital, sistema que é oferecido em um trajeto de 30km de extensão. De acordo com a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), o trem chega a transportar aproximadamente 10 mil passageiros por dia.
Com a popularização de aplicativos de transporte, a exemplo do Uber, em Campina Grande o sistema de transporte público vem sendo cada vez mais desvalorizado. A concorrência de preços das tarifas desfavorece a oferta de ônibus, que já carece de qualidade em função do histórico de baixos investimentos. A situação causou campanhas nas mídias tradicionais na cidade contra os aplicativos e a discussão na câmara de vereadores sobre regulamentar a tarifa mínima do uber em duas vezes o valor do transporte público.
O município de Patos, cidade média do sertão paraibano com 100 mil habitantes, já chegou a ter transporte público com serviço de ônibus, porém moradores da cidade relatam que a frequência era baixíssima, chegando a ser oferecido somente três vezes ao dia. Para compensar a falta de oferta de transporte público, em quase todos os municípios paraibanos existe serviço de moto-táxi que, oficializados ou clandestinos, se tornaram o transporte oficial nas cidades onde estão presentes.
Outro ponto bastante importante e que deve ser levado em conta é o crescente protagonismo do veículo motorizado de duas rodas. A motocicleta predomina na paisagem urbana do universo das cidades pequenas paraibanas, substituindo gradativamente a bicicleta. Sem fiscalização, uma vez que a maioria desses municípios não possui o trânsito municipalizado, motoristas relegam o cumprimento das orientações de segurança, banalizando, assim, o mau uso desse transporte.
Em diversas cidades, notadamente as que possuem áreas rurais importantes, a moto se transformou em uma alternativa para o acesso aos serviços públicos básicos. Essa migração cavalo-moto, muito comum nas áreas rurais, se faz na maioria das vezes sem a respectiva formalização, resultando em grande número de não-habilitados, e sem o uso do capacete.
Nesses municípios pequenos, a falta de acesso a serviços e comércios de grande porte movimenta cotidianamente as rotas entre cidades maiores, que se completam na oferta de equipamentos, em especial, os de saúde e de educação. Diversos ônibus saem diariamente, especialmente à noite, para levar alunos para instituições de ensino em cidades maiores como João Pessoa, Campina Grande e Patos.
Os ônibus escolares municipais constituem um objeto de análise especial. Conhecidos como “amarelinhos”, são tidos na maioria dos municípios pequenos como a única forma de deslocamento público coletivo. Eles chegam a representar tanto na dinâmica de mobilidade que, muitas vezes, as “caronas” de pais ou familiares, apesar de proibidas por lei, se tornam frequentes, já que muitas áreas encontram-se isoladas.
Geralmente, as rotas dos ônibus escolares são incoerentes, apresentando sobreposição de linhas, horários incompatíveis com as aulas, entre outros fatores que colocam os municípios em uma situação cada vez mais delicada quanto à gestão desse serviço. Somado a isso, as Prefeituras vivem um drama entre o incentivo à educação em todos os níveis escolares, através da garantia do transporte, e a incapacidade de investimento próprio de todo esse sistema, já que não há financiamento federal para o pagamento dos combustíveis.
Nas cidades-pólo, destino dos ônibus escolares, o problema toma outra proporção. A falta de abrigo para esses transportes, que se encontram e se concentram praticamente nos mesmos horários, causa grande impacto no sistema viário e os motoristas se veem obrigados a estacionar em espaços não planejados para tal. São cenários comuns entorno de universidades, públicas e particulares, principalmente no período da noite, tornarem-se verdadeiros centros de baldeação, em geral no espaço público, com uma confusão de pedestres cruzando com veículos de pequeno, médio e grande porte.
Vê-se, portanto, nesta breve abordagem, que falar dessas cidades pequenas é um desafio imenso, visto a dispersão de problemas existentes e a multiplicidade de experiências e realidades do país. Apesar de carregarmos a ideia de que apenas as cidades de médio e grande porte apresentam complexos problemas urbanos, é curioso perceber como os graves problemas estruturais encontrados hoje nas cidades desse porte se refletem, em escala muito própria, nas cidades pequenas que tratamos.
Voltar os olhares para a tipologia urbana das cidades pequenas é fundamental para a penetração na realidade dominante do nosso país. Em especial, é importante fazer com que o resultado das boas práticas observadas em algumas gestões possam ser reproduzidas e levadas à nível de política pública em escala nacional.
*Aída Pontes é doutora em planejamento urbano pela Eindhoven University of Technology, diretora-presidente do LabRua, Conselheira Superior do Instituto de Arquitetos do Brasil na Paraíba e professora do curso de arquitetura e urbanismo da UniFacisa.
Flávio Tavares é mestre em desenvolvimento urbano pela UFPE, Secretário de Planejamento do município de Conde e 2° Secretário da Diretoria do Instituto de Arquitetos do Brasil na Paraíba.
Pedro Rossi é mestre em teoria e história da arquitetura pela Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona, professor e coordenador do curso de arquitetura e urbanismo do IESP, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil na Paraíba e articulador do Núcleo PB do projeto BR Cidades.
Edição: Cida Alves