Paraíba

MEMÓRIA

Artigo | Sobre a "alma" do Povo Brasileiro

Conhecença, saberes e fazeres travestidos de folclore

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Boitatá, morador dos rios e lagos, que só saia de seu habitat para assustar e queimar as pessoas que provocam queimadas nas matas.
Boitatá, morador dos rios e lagos, que só saia de seu habitat para assustar e queimar as pessoas que provocam queimadas nas matas. - Reprodução

“Homem e natureza, se juntam na decisão de sempre honrar nossa gente e respeitar nosso chão.  (...) Guardiões das florestas, dos jardins brasileiros, das histórias do povo e seus mananciais de beleza.”                                                                         
(Guardiões das Florestas - Renato Teixeira, 1999).

 

Quanto encantamento despertavam em mim as histórias contadas por meu avô, João de Quino (1888-1980), agricultor e tangedor, ribeirinho do Pajeú no alto Sertão de Pernambuco, um contador de causos, homem sem letras e muita sabedoria – um Griot, hoje sei.  O mundo fantástico contido em suas histórias foram ensinamentos para a vida, que até hoje permanecem vivas em minha memória.  Foi ouvindo sobre a esperteza do macaco que sempre ludibriava a onça, da astúcia do sapo escondido dentro da viola do urubu para ir à festa no céu, da sagacidade do burro ao enganar o lobo evitando tornar-se o seu almoço que aprendi a lição básica fundamental que garantiu a sobrevivência do nordestino: astucia, inteligência, são superior a força.  As histórias do meu avô dividiam espaço com as “advertências” gritadas por minha avó Izaura cada vez que nos via correr em debandada na direção do mato: “cuidado com o cipó de Cumade Fulozinha!” – ela própria com seu “chiqueirador” pendurado em algum torno na cozinha, preparada para nos “ensinar”. E sempre ciente que entre nós existiam os mal intencionados e dispostos, no mínimo, a retirar alguns filhotes de passarinhos dos seus ninhos ou correr atrás de suas preciosas galinhas chocas.


Mas, e Cumade Fulozinha quem era? Um ser fantástico, guardiã dos animais, que habita(va) a zona rural de Pernambuco. Severa, castigando duramente com cipoadas nas pernas quem maltrata os animais – incluindo outros animais, a exemplo dos cães pertencentes aos caçadores. Sendo que Cumade Fulozinha é uma lenda entre as inúmeras que habita(va)m o imaginário do povo e as matas em cada recanto do Brasil, os “guardiões das florestas”. Dentre os mais conhecidos protetores das nossas florestas estão: o Curupira, que punia caçadores e lenhadores confundindo-os, enganando-os, fazendo-os esquecerem o caminho, se perderem e perderem a caça; a Caipora que do mesmo modo agia protegendo os animais e guardando as florestas; o Boitatá, morador dos rios e lagos, que só saia de seu habitat para assustar e queimar as pessoas que provocam queimadas nas matas e florestas; o Minhocão do Pari que punia duramente os pescadores que não respeitavam a piracema e capturavam peixes na época da reprodução; a Mãe-do-Ouro que, além de resguardar os tesouros escondidos e as minas, ainda protegia as pessoas injustiçadas e as mulheres maltratadas por seus maridos; ...  


Estas figuras míticas que habita(va)m as nossas matas, florestas e rios cuida(va)m de tudo que lá havia (as matas, as águas, os minerais, os animais e em especial as fêmeas prenhas). Apesar de assustadoras, medonhas, intimidantes, vingadoras foram criadas pela imaginação coletiva e, envoltas em mistérios, no sobrenatural, contribuíram para formar o sistema de valores éticos e morais do povo brasileiro, a expressão da sua forma de ser, sentir e agir em relação a natureza. Assim, o nosso mais valioso tesouro foi cuidadosamente protegido através de um expressivo conjunto de lendas, crenças e superstições evitando que o homem a invadisse e degradasse. A esta percepção respeitosa da natureza que hoje chamamos de “consciência ambiental”, os estudiosos do folclore/cultura popular chamam de “consciência mítica”.


O mineiro José Vieira Couto de Magalhães (1836-1898), um dos primeiros brasileiros a escrever ensaios sobre as tradições populares e o papel das figuras fantásticas que povoavam o imaginário do povo brasileiro, afirmava que as lendas possuíam, em seus sentidos simbólicos, a função de educar, eram formas de “fazer entrar no pensamento do selvagem a crença na supremacia da inteligência sobre a força física”.  E esta lição contada a partir das lendas continua a nos causar espanto quando escutamos que o vagaroso jabuti com sua astúcia vence o veloz coelho ou o vento ou o veado, a depender da região do Brasil. E  segundo Couto de Magalhães (citado por Luís da Câmara Cascudo, 1898-1986) a lição era: “Não há tão desesperado passo na vida, do qual o homem se não possa tirar com sangue frio, inteligência e aproveitamento das circunstâncias” (cf.: Antologia do Folclore Brasileiro, Volume I, p. 208). 


Portanto, cada lenda ensina uma verdade que não pode ser ignorada. A preocupação com o meio natural ensina: para manter é preciso cuidar. Do mesmo modo, a narrativa do fraco que vence o forte ensina: a valentia, a força e a estupidez não vencem a lucidez, a prudência e a inteligência. 


Este conjunto de conhecimentos, resultado da comunhão/ hibridação dos saberes e das práticas culturais dos indígenas e africanos com pinceladas europeias, construído a partir da experiência existencial dessa gente simples expressa a “alma” do povo brasileiro, um legado por nós hoje conhecido por Folclore. Como tão bem dito por Luís da Câmara Cascudo (1983): uma “sabedoria oral”, uma memória coletiva anteposta aos conhecimentos transmitidos pela ciência. É uma conhecença possuidora de “bases universais”, portadora de um “instinto de conservação indispensável para manter o patrimônio sem modificações sensíveis, uma vez assimilado” (cf. Civilização e Cultura, 1983. p. 679-681).


E foi “considerando a importância crescente dos estudos e das pesquisas do Folclore, em seus aspectos antropológico, social e artístico, inclusive como fator legítimo para o maior conhecimento e mais ampla divulgação da cultura popular brasileira” que no dia 17 de agosto de 1965, o Congresso Nacional estabeleceu que o dia 22 de agosto seria dedicado a comemorar o Folclore (Decreto nº 56.747/1965). A data escolhida era alusiva ao lançamento do termo Folclore em 1846 pelo britânico William John Thoms (1803-1885) a partir da junção das palavras inglesas folk (povo) e lore (conhecimento). Estava forjado o termo que passaria a expressar a obra do povo:

“o conjunto de criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social. Constituem-se fatores de identificação da manifestação folclórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade” (conceito reformulado no VIII Congresso Brasileiro do Folclore, 1995). 
 
Desde então, mais e mais atenção passou-se a dedicar aos estudos das praticas e ações culturais do povo, indubitavelmente porque “a história das nossas origens não estavam escritas em documentos, [mas sim] em nossas lendas e canções populares”, já afirmava Silvio Romero (1854-1914). 
Para hoje a lição é: não é mais possível pensar o universo da cultura de forma simplista, numa perspectiva de oposição onde o saber da ciência acadêmica rivaliza e se opõe a ciência do povo. A cultura deve ser vista como um todo complexo, no qual as suas diversas possibilidades de ser interagem continuamente entre si, não geram oposição e sim uma forma de influência recíproca: “circularidade entre as culturas”, um “influxo recíproco” entre as diferentes formas de culturas, nas quais uma se alimenta da outra (Carlo Ginzburg, 1987). 
Portanto, vamos conclamar em altos brandos os espíritos da natureza para bebermos na fonte da sabedoria ancestral afro-indígena, para povoarem nossos sentidos, nos trazendo a força e a coragem que nesse momento nos falta para vencer a tirania e o desmando do mentecapto.  

* Antropóloga, pesquisadora, professora da UEPB/NEABI
 

Edição: Heloisa de Sousa