Sexta-feira, 30 de agosto... O, ainda presidente da ANCINE, (Agência Nacional de Cinema), Christian de Castro, participou de uma sabatina no Fórum de Emissoras Públicas do Nordeste em Fortaleza - CE, onde eu, orgulhosamente, representava a Emissora Paraibana de Comunicação, como Gerente Executivo de Jornalismo da Rádio Tabajara. Após a participação, aproveitei para um bate-papo exclusivo com Christian para o meu blog marcosthomazm.wixsite.com/. Ao final da nossa conversa o relógio marcava 18h. Voltei para finalizar os trabalhos no Fórum e de lá, nos dirigimos ao Cine Ceará (tradicional festival de cinema local). O relógio marcava 19h10, ainda estávamos no ônibus, no trajeto até o tradicional Cine São Luiz, quando recebo a informação de que o presidente Jair Bolsonaro havia afastado o diretor-presidente da ANCINE do cargo. Portanto, pouco mais de uma hora após entrevistá-lo, ele já não podia oficialmente exercer a função. Tinha em mãos a última entrevista de um dos mais importantes dirigentes da pasta da Cultura no Brasil. Por consequência, um dilema jornalístico: para alguns o material perderia ali, qualquer valor. Para mim ganhava ainda mais importância, afinal estávamos tratando de declarações de um gestor, ainda legitimamente, tentando manter o cargo, defendendo mesmo desconfortavelmente medidas de um governo, que instantes depois o demitiu sumariamente. Ademais, tratamos de uma Agência que movimenta mais de um bilhão de reais anualmente, mergulhada em crise, logo com declarações reveladoras e privilegiadas sobre sua real situação, inclusive com risco iminente de suspensão de financiamentos, causando impacto incalculável no ritmo de produções nacionais, como veremos a seguir... A ANCINE está imersa em uma enorme crise: recursos bloqueados pelo TCU, risco de travamento geral de todas as ações por falta de composição do Conselho (prerrogativa do governo federal) e guerra ideológica declarada pelo próprio presidente.
*Apenas um dia após o afastamento do diretor-presidente, Bolsonaro sequer disfarçava a real intenção de aparelhamento do cargo e recrudescia o patrulhamento ideológico com a sinalização que indicará um evangélico para o cargo: “É bíblia embaixo do braço, joelho ralado no milho e que saiba 200 versículos da Bíblia”. O movimento presidencial indica a confirmação do que ele trata como filtro, mas a classe artística trata como explícito restabelecimento de censura sobre a manifestação artística nacional.
Confira a entrevista exclusiva, na íntegra:
Marcos Thomaz - Esse ano o setor audiovisual foi surpreendido com a determinação de suspensão, pelo Tribunal de Contas, do repasse de verbas do órgão. Em que pé está esta questão hoje??
Christian de Castro - Olha... São dois momentos, né?? A partir do momento da decisão do TCU a gente tinha dúvida com relação a suspensão, realmente integral, ou não de acordo com o comando. E a decisão de mérito dos pontos específicos que ele levantava com relação aos projetos analisados, glosas de prestação de contas. Com relação a primeira dúvida foi esclarecido que o comando ele estava não claro, por parte do TCU. Então não era um comando de paralisação, mas sim um comando para medir o impacto na capacidade operacional da agência, no volume de projetos que vinha sendo tratado. Então, a gente se comprometeu em fazer uma análise e estabelecer um plano de ação para resolver o passivo de prestação de contas. Então, com relação a isso a operação voltou a andar, com uma análise mais detalhada dos processos dentro da agência. Então isso fez com que a operação passasse a andar numa velocidade menor, digamos assim, mas não parou. A gente volta numa velocidade normal, agora. Com relação a análise de mérito de alguns pontos apontados pelo TCU, a gente já vem debatendo com a área técnica, entramos com recurso, já foi designado novo relator... para a gente chegar e explicar os motivos da nossa análise ser feita daquela forma, dos nossos projetos serem realizados daquele jeito, porque o modelo de negócios do audiovisual tem certas peculiaridades, que demandam uma peculiaridade na análise, que inclusive no voto do Ministro Bruno Dantas, ele coloca isso de uma maneira muito clara. Então, com relação a estes pontos que a gente precisa analisar com pouco mais de cuidado, antes da decisão final do TCU, a operação tá andando um pouco mais devagar, mas não tem nada parado!
Marcos Thomaz - Mas você comentava conosco, em meio ao Fórum das Emissoras Públicas do Nordeste, que haveria um outro porém...mesmo que houvesse a liberação do TCU hoje, a questão da composição do Comitê, travaria, inviabilizaria a liberação desses recursos...
Christian de Castro - Aí estamos falando dos recursos novos do Fundo Setorial do Audiovisual. Os recursos novos vem sendo transferidos normalmente do Tesouro para o Fundo, no entanto para decidir aonde esses recursos vão ser alocados precisa ser designado o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual. E ele ainda não foi designado esse ano pelo novo governo. A gente aguarda que esse novo Comitê Gestor seja designado nas próximas semanas para que a gente possa debater ali no universo do Comitê, onde tem representantes do governo e do mercado, qual vai ser a distribuição desse recurso, como esse recurso será investido...
Marcos Thomaz - Então, pelo que se compreende de sua fala, os recursos estão sendo alocados e não há comprometimento orçamentário para esse ano...
Christian de Castro - Exatamente, exatamente...
Marcos Thomaz- Sim, diante disso, pode-se concluir que o entrave de liberação é burocratizado pela própria inação, ou desinteresse do atual governo federal...
Christian de Castro - É, veja bem... como eu disse, há uma pendência na composição do Comitê, pelo governo federal, mas isso não é uma coisa isolada. Cabe a todos os componentes da cadeia cinematográfica sair desse impasse. A busca pelo diálogo, estabelecimento de um canal de comunicação efetivo e fazer-se entender no que propõe...
Marcos Thomaz- Mas os próprios artistas tem ocupado espaços na mídia para apresentar trunfos econômicos da indústria do audiovisual. Isso já não seria mobilização suficiente?/ por exemplo, estima-se que a cadeia do audiovisual movimente anualmente 25 bilhões de reais. O impacto da estagnação de um setor desse, mais do que a questão ideológica, representa diretamente um prejuízo econômico nacional. Qual seria, então, a grande estratégia para convencer e situar a indústria de audiovisual como um setor importante economicamente.
Christian de Castro- É. A ANCINE movimenta... O orçamento que a Ancine coloca para movimentar entre fomento indireto, que são as leis de incentivo e o fomento direto, que é o Fundo Setorial do Audiovisual... a gente está falando do universo de 1 bilhão de reais. 1 bilhão!! Os 25 bilhões é o que a cadeia do audiovisual contribui por ano para o PIB. É o valor adicionado ao PIB por ano. Então, através desse 1 bilhão, a ANCINE colabora para que a cadeia do audiovisual gere 25 bilhões de valor adicionado ao PIB. Isso corresponde a algo em torno de 0,5% do PIB. É mais do que a indústria farmacêutica, têxtil. A gente está falando de quase 300 mil empregos... Então é uma cadeia que é muito dinâmica, pujante, que é impactada diretamente pela tecnologia. Então esse é o debate que a gente vem tentando travar e demonstrar a importância desse nosso setor dentro da área econômica do governo e dentro dos ambientes de tomadas de decisão. Então, a importância da gente manter o audiovisual rodando de uma maneira pujante, como vinha rodando, é fazer com que esse setor da economia que é intensivo em criação de emprego, renda... ele é muito democrático na geração de renda, né?? Em produção audiovisual você emprega desde trabalhadores de nível técnico, na construção (cenários, luz elétrica etc) até altamente qualificados. E se multiplica em todos os níveis. É diverso, emprega jovem, idosos, homem, mulher, todos os gêneros... Então, assim é uma cadeia muito forte de geração de emprego e renda. É importante a gente manter andando. E como ela vem ao longo do tempo sendo desenvolvida em cima de uma política... mesmo que se entenda que essa política chegou no seu limite e que agora a gente esteja entrando nm novo ciclo de crescimento e uma mudança no olhar da política, uma mudança do papel do estado dentro disso, de um olhar do Estado mais próximo da diversidade, fora do eixo Rio-SP, mais regional, com estímulo aos novos entrantes, essa parceria com as emissoras públicas... É importante a gente continuar o trabalho, mas que seja feita uma transição, qualquer movimento brusco ele causa um transtorno no meio do caminho...
Marcos Thomaz- Com todo esse panorama fica difícil conter a onda de temor espalhada entre os profissionais do setor para o próximo/próximos anos... Ano passado foram mais de 170 produções financiadas pela Ancine. Em 2019 ficará perto disso? E para 2020 já teremos impacto desse entrave na ANCINE??
Christian de Castro - Eu acho que a gente deve ficar mais ou menos com o mesmo número em 2019. Porque o audiovisual é isso, quando você investe em um ano, os projetos eles acabam chegando no mercado entre 2 e 4 anos depois. Então o que a gente vai receber esse ano nos cinemas é uma safra passada... Esse ano a gente não destinou recurso ainda, mas ano passado a gente foi muito intensivo no investimento. Ano passado foi um ano que a gente provocou o maior investimento da ANCINE na cadeia do audiovisual, em termos de volumes investidos, editais colocados, recursos destinados, projetos selecionados... A gente andou muito mais do que nos anos anteriores, então assim, a gente ganhou um fôlego pra esse ano... É lógico que a gente já consumiu esse fôlego, é importante que o comitê gestor seja colocado e que a gente decida a destinação desse recurso porque esse vale que a gente está passando nesse momento, ele vai se refletir nas produções que vão chegar nas telas daqui a dois anos, certamente...
Marcos Thomaz- Nesse ritmo atual uma hora vai surgir a lacuna, ou um imenso vazio no cenário audiovisual brasileiro??
Christian de Castro - Uma hora vai surgir a lacuna, certamente.
Marcos Thomaz Como interlocutor e representante do governo, como a ANCINE enxerga ou como pensa em administrar, por exemplo, a intenção declarada do presidente Jair Bolsonaro em estabelecer um “filtro” para financiamento das produções, o que a classe artística naturalmente recebeu como uma manifestação explícita de censura...
Christian de Castro - Olha, assim... todo processo seletivo de obras, seja de um lado ou de outro, ela é feita por um filtro de quem está selecionando... Ano passado a gente procurou estabelecer na ANCINE uma forma mais direta de fazer com que os recursos andassem com editais automáticos, pontuando em cima dos arranjos entre as empresa e tal... Porque a seleção ela acaba demorando... porque antes do ano passado, os projetos passavam por esse processo seletivo e tinha uma demora muito grande para selecionar os projetos! Então a gente resolveu mudar exatamente pela falta de capacidade da Agência de lidar com aquele volume de recursos para selecionar um volume muito grande de projetos. Agora quando o presidente chega e traz que... eu interpreto a questão do filtro como uma necessidade de identificar quais são aqueles projetos mais adequados a política pública da forma como o governo pensa que são adequados nesse momento, de acordo com qualquer linha! Então para estabelecer isso a gente vai debater com o comitê gestor... Acho que o Comitê Gestor é o ambiente para a gente debater isso! Do ponto de vista da operação, é mais pesado para a gente carregar. A gente precisa ver as formas da gente chegar e estabelecer esse mecanismo seletivo das obras audiovisuais nesse volume. E como que a gente consegue achar soluções para esse problema. As parcerias regionais que a gente já conversou. Antes já funcionava assim, antes já tinham critérios para selecionar os projetos. Sejam os editais seletivos de cinema, sejam os projetos para televisão, os fluxos contínuos, eles tinham critérios seletivos estabelecidos pelos Comitês de seleção da Agência. A gente tentou mudar isso ano passado para o benefício da operação, para o dinheiro chegar mais rápido na operação... Agora se tem uma necessidade de se restabelecer critérios para esta seleção, vamos restabelecer os critérios novamente...
Marcos Thomaz Pra gente finalizar, a Paraíba, apesar de ser um estado menos abastado economicamente, e cinema é dinheiro... Enfim, temos grandes talentos em todos os setores do audiovisual, de diretores a atores e recentemente duas produções muito premiadas no cinema nacional, Pacarrete e Bacurau, contaram com uma leva significativa de atores paraibanos...
Christian de Castro- Primeiro acreditar na força da atividade econômica. Primeiro, na capacidade que este setor tem de ser resiliente, de estar sempre prevalecendo, se reinventando. Falando de reinvenção, ele é baseado tipicamente na criação, na inovação e com muita tecnologia envolvida em todos os níveis. Então a mensagem é continuar criando, não desistir, continuar trabalhando e buscando caminhos, porque certamente daqui para frente o acesso ao recurso público, até pela situação que a gente vê o país, né, um aperto muito grande orçamentário... A gente vai continuar trabalhando, procurado direcionar e trabalhar com todos os estados na diversidade da cultura brasileira, mas é procurando ser criativo, ainda mais com as novas tecnologias, novas janelas, novas plataformas...A gente tem exemplos, o Brasil é uma potência no universo digital, na internet, Brasil é o segundo país do mundo em números de views e inscritos no youtube!! Acho que o terceiro canal do mundo em número de inscritos e o maior canal de música do mundo é o do Kondzilla. Então assim, Winderson Nunes... Agente tem ferramentas e talentos brasileiros que se desenvolvem na internet de uma maneira muito potente, criando novas maneiras de negócios... Então é pensar esse ambiente digital, usar a criatividade que já existe, para criar os produtos também na criação desses novos modelos, em novas formas de se comunicar com o público, através do digital! E ai o estado ele entra alavancando esse potencial... procurar usar o estado como alavancador disso, porque hoje essas novas ferramentas no digital e na tecnologia proporcionam uma aceleração que é muito mais rápida do que a capacidade do estado se reinventar. É muito mais fácil o criador e o empreendedor, eles estarem se reinventando nesse mercado e nesse novo modelo das mídias e das tecnologias digitais e usarem o estado como instrumento de alavancagem. Acho que essa é a grande mensagem: usar a criatividade também para a modelagem de negócios...
Edição: Cida Alves