Em breve, vinte anos irão fechar um importante ciclo de mais um século. No contexto de uma nova era, qual é o papel de uma profissão que é capaz de influenciar o comportamento das pessoas? Entendendo que a arquitetura abriga, acolhe e condiciona as atividades da vida humana, que o urbano é o meio onde as principais experiências coletivas são vividas e, também, é onde as desigualdades sócio-espaciais se apresentam cada vez mais emergentes, haveria uma função social a ser cumprida por esses profissionais?
No Brasil, apesar de um longo e virtuoso caminho a favor da popularização da arquitetura e urbanismo, a sociedade, igualmente, parece sofrer de uma certa cegueira sobre a sua importância. De maneira geral, a ideia de que arquitetura é um artigo de luxo para servir como mercadoria, à determinada classe social que permeia o imaginário das pessoas. Por outro lado, seguimos enfrentando graves problemas relacionados à mobilidade urbana, à qualidade arquitetônica da moradia social, ao número do déficit habitacional, ao acesso inclusivo aos espaços públicos, à infraestrutura urbana e, até mesmo, ao saneamento básico.
Em um país onde aproximadamente 90% de profissionais de arquitetura e urbanismo atuam somente para 10% da população, não seria o momento de inverter a lógica desse cenário e trabalhar para equalizar a estatística, de modo a reparar as desigualdades e injustiças sociais? Em caso afirmativo, como se comporta a Universidade diante da formação cidadã, para além da míope visão empreendedora e empresarial, quando estudantes egressos deverão atender ao chamado mercado de trabalho?
Os desafios e os caminhos para compreender o papel da arquitetura e do urbanismo na nova década, considerando o lugar da profissão na atual conjuntura, é o tema da entrevista com a arquiteta e urbanista Amélia Panet, professora do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), conselheira do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Paraíba (CAU/PB) e ex-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil na Paraíba (IAB.pb).
Pedro Rossi - Considerando o lugar da profissão na atual conjuntura, para você, qual é o maior desafio para a nova geração de recém formados e de jovens arquitetos e arquitetas urbanistas?
Amélia Panet - O maior desafio, na minha opinião, é se fazerem necessárias e necessários para a sociedade, com toda a sua complexidade, considerando as suas atribuições profissionais. Nesse caminho, terão que reinventar-se enquanto profissionais, perceber as carências e as lacunas de mercado, sem esquecer da sua responsabilidade social como profissionais capazes de contribuir com a transformação dessa mesma sociedade.
A Assistência Técnica à Moradia de Interesse Social (ATHIS) é assegurada por lei desde 2008 (Lei N. 11.888/2008). No entanto, quem mais deveria usufruir desse serviço desconhece sua existência, tem pouco acesso ou não sabe como fazer para se beneficiar. Na sua opinião, como é possível democratizar esse e outros direitos que garantem o combate e a reparação histórica contra as desigualdades sócio-espaciais?
Essa lei é revolucionária no campo da arquitetura social. A lei assegura a assessoria técnica de engenheiros e arquitetos à população mais carente, no entanto, os profissionais precisam ser remunerados, seja pelo âmbito federal, estadual ou municipal. Hoje, poucas prefeituras assumiram essa responsabilidade e alguns cursos acadêmicos em suas extensões, mas ainda estamos longe como política pública. Quando foi criada, a intenção era que funcionasse como um sistema único de arquitetura social, como existe o SUS na área de saúde. Deveríamos ter escritórios de arquitetura social nos pontos mais carentes da cidade. Porque a ideia é trabalhar com a cidade real e conferir maior qualidade. A arquitetura precisa ser vista como um bem de necessidade básica, pois ela diz respeito à salubridade, à qualidade de vida. E o profissional de arquitetura teria a oportunidade de viver de arquitetura social.
A formação superior em arquitetura e urbanismo deve ter papel preponderante na constituição do pensamento crítico sobre a função social da profissão. Partindo dessa ideia, como você vê as universidades no processo de construção do conhecimento mirando sanar os problemas da cidade real?
O primeiro caminho é rever suas estruturas curriculares, assumir a nossa contribuição social enquanto formadores de profissionais, rever referências bibliográficas que focam na produção europeia e norte americana e introduzir referências latino-americanas, africanas e indígenas que possam valorizar nossas raízes. Esse pensamento decolonial deve contribuir para a autonomia do nosso próprio conhecimento. É preciso reconhecer as diferenças étnicas e de gênero e valorizá-las. Rever as temáticas de ensino, pesquisa e extensão e se aproximar da cidade real. A extensão é fundamental nesse processo, pois extrapola os muros fechados do conhecimento acadêmico.
*Pedro Rossi é arquiteto e urbanista, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil na Paraíba, coordenador do curso de arquitetura e urbanismo do IESP e articulador do Núcleo PB do projeto BR Cidades.
Edição: Heloisa de Sousa