Diferente do que muitos esperavam, com a lei abolicionista, a vida da população negra brasileira permaneceu plena de obstáculos sociais, inclusive para satisfazer as necessidades básicas. E a família do menino negro, pobre, da cidade de Alagoa Grande, estado da Paraíba, teve centralidade na sua mãe, Flora Mourão.
No livro “Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo”, biografia escrita por Fernando Moura e Antonio Vicente, há nas páginas 32-33, os dados indicando que a mãe de Jackson , “com cerca de 1,50m de altura, magrinha e pele bronzeada”, abalou padrões de uma sociedade machista e sexista, era coquista.
José Gomes Filho, irmão de Severina e de João foi chamado de Jack, Zé Jack, até tornar-se Jackson do Pandeiro, identidade artística para a qual Campina Grande foi fundamental. Esta cidade recebeu Flora Mourão, viúva, que, na década de 1930 em uma viagem a pé “que durou quase uma semana”, fugiu, com os seus filhos e filha, do terror da fome.
Em documentário da TV Cultura , Jackson dá depoimento sobre a situação de extrema pobreza que viveu em Alagoa Grande:
[...] mas, eu até gostava de lá, entendeu nêgo véi, tinha um trem, tinha as lagoas pra gente pescar, entendeu, também passei uma fome da bixiga lá, por isso também não quero voltar pra lá, tinha que trabalhar na enxada, era o que tinha lá, entendeu, outra coisa mais num tinha, aí fui pra Campina Grande, aonde que em Campina Grande o negócio já melhorou a situação. (TV CULTURA, 1973)
A influência musical de sua mãe está gravada na sua história de vida e talvez dela também herdou a inabalável fé nos caboclos e nos orixás e o olhar diferenciado para as mulheres negras que, cantadas nas suas músicas (nem todas de sua autoria), destoam do que a sociedade racista apregoa ainda nos 131 anos da abolição, formal e inconclusa: a exploração e tentativa de impedimento à dignidade de viver.
Jackson do Pandeiro, enquanto um homem do seu tempo, culturalizou-se em uma sociedade machista, sexista e racista, todavia, no quesito da inferiorização das Mulheres negras, promoveu rupturas.
Indo ao cancioneiro das décadas de 1950 / 1960/ 1970, encontramos letras de músicas, nas quais as mulheres negras são tratadas carinhosamente por “neguinha”, “minha preta”, “flor de quixabeira”, “morena”, “moreninha”, “morena faceira”, “linda roxa”. São mulheres negras com corpo e alma, apresentada com beleza física; com poderes sobrenaturais; que recebem declaração de amor e proposta de casamento; que são reconhecidas pela valentia e coragem.
Em que pese haver em algumas letras de músicas, trechos que mereçam, (à luz de conceitos contemporâneos) críticas, a maior parte evidencia o olhar de ruptura dentro do universalismo atribuído à categoria Mulher e assim, a concepção sobre mulher é relativizada, qualificando a mulher negra, o que pode ser constatado nas músicas : “Morena bela”, de Onildo Almeida/ Juarez Santiago ; “Jaraguá”, de Alventino Cavalcanti/Jackson do Pandeiro; “Rosa”, de Ruy Moraes e Silva; “Marieta”, de Luiz de França/Joceval Costa Lima.
No campo da atividade laboral, a mulher negra vem historicamente desconstruindo lugares sociais que as práticas e mentalidades racistas instituíram, ainda hoje, ocupa lugares subalternizados e, o exemplo maior é a sua presença na atividade do trabalho doméstico que, tardiamente, tem o processo de valorização legal iniciado com o Projeto de Emenda Constitucional nº 72, de 02 de abril de 2013, conhecido como PEC das Domésticas. Antes desta PEC, direitos trabalhistas dos quais, jornada de trabalho, férias, não eram extensivos à esta categoria profissional. Tornou-se Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015, sancionada pela Presidenta Dilma Roussef. E a abolição da escravatura foi em 1888!
Fazendo uma crítica social, a música “Babá de cachorro”, gravada em 1967, de autoria de Antonio Barros/Jackson, mostra o abismo social/racial brasileiro, quando narra cantando: “Eu tô namorando uma escurinha em Copacabana/Ela é babá, ela é babá de gente bacana/À tardinha ela sai pela avenida a passear/Ela é babá , do cachorro da madame , ela é babá (2x)/Minha escurinha, minha babá/Deixa o cachorro da madame e vamos se casar”.
E o Rei do Ritmo, apesar da ausência física desde 10 de julho de 1982, continua cantando e ativando os nossos sentidos e nos conduzindo para os ambientes festivos, para espaços das orações para divindades afro-brasileiras, para a crítica às questões de sexualidade/gênero e elevação das identidades de mulheres negras.
*Professora da Universidade Estadual da Paraíba, campus III, participa do Neabi-Uepb/Guarabira e integra a Bamidelê-Organização das Mulheres Negras na Paraíba
Edição: Heloisa de Sousa