A história que vamos contar hoje parte de duas jovens mulheres que representam muito para a cultura do Maracatu em João Pessoa. Elas são Angela Gaêta e Marcella Loureiro, batuqueiras do coletivo Maracastelo, em João Pessoa.
Neste sábado (30), a partir das 15h, o Maracastelo realiza um arrastão de Maracatu pelas ruas de João Pessoa, cena que até sua fundação era algo inédito na cidade. O arrastão sai da Escola Francisca Ascensão Cunha, nos Bancários, até o bar Cherimbom, marcando o encerramento do Mês da Consciência Negra e a culminância da oficina aberta de maracatu, realizada pelo grupo desde julho deste ano.
Angela Gaêta nasceu em São Paulo e é fundadora do Maracastelo. Atualmente faz a regência do coletivo, ensina a tocar maracatu, confeccionar instrumentos e faz Pedagogia do Campo na UFPB. Já Marcella Loureiro é de Campina Grande e batuqueira do Maracastelo. Ela também confecciona instrumentos, coordena alguns projetos do coletivo e é formada em Artes Visuais pela UFPB.
ONDE TUDO COMEÇOU
Foi na cidade de São Paulo que Angela teve seu primeiro contato com os tambores. Ela estudava em uma escola pública, com alto índice de criminalidade, e o meio encontrado por um grupo de professores e alunos para resgatar a escola foi através da arte. Várias oficinas foram ministradas, entre elas a de maracatu. Foi desse contato que ela conheceu os instrumentos e participou da primeira oficina de construção de tambores com o projeto intitulado “Calo na Mão”. Quando chegou a João Pessoa para estudar, em 2013, alguns de seus amigos lhe pediam para ensiná-los a tocar maracatu, mas ela relutava, pois não o via apenas como algo musical.
“Em 2011 comecei a participar da Nação Estrela Brilhante, uma nação fundada em 1906 que fica no alto José do Pinho, um morro lá do bairro Casa Amarela, em Recife. Eu já tinha um mestre, tinha uma rainha, tinha uma história que me cobrava de não fazer a coisa meramente musical, porque já não era musical para mim havia alguns anos. Porque o maracatu eu entendo como uma cultura que envolve muita coisa, inclusive a confecção dos instrumentos. Nesse mês da consciência negra, vamos ter oficina de corte e costura, tem toda a questão do patrimônio do maracatu, a gente faz estandarte, a gente faz muitas coisas, assim como no cavalo marinho, que o pessoal faz aqueles peitorais”, explicou Angela.
O Maracastelo é, além de um grupo de maracatu, um coletivo que desenvolve outras atividades. Sua história se mistura com a história de resistência e ocupação da Associação de Moradores do Castelo Branco. “A gente, tudo estudante da UFPB, sentava e olhava para o prédio da associação, perguntava às pessoas que moravam por ali o que era e ninguém sabia dizer, era abandonado”, rememora Angela.
Para Marcella, foi nesse momento que Angela cedeu aos pedidos dos amigos de montar um grupo de Maracatu. “Finalmente Angela sucumbiu aos pedidos, resolveu ir atrás desse lugar, dessa associação. Angela tinha alguns instrumentos; ela tinha um agbê, um mineiro e eu tinha duas alfaias”.
Foi no prédio abandonado da Associação de Moradores do Castelo Branco onde tudo começou. Uniu-se a vontade de fazer maracatu com a de organizar a comunidade, a partir de manifestações populares, surgindo então o Coletivo Maracastelo.
“Não é só o aspecto da música, porque o maracatu não é só música, tem todo um contexto. Eu morava há mais tempo no Castelo, via pouquíssimas vezes a associação aberta, mas era assim, não tinha ninguém dentro e depois a gente descobriu que era um espaço que não tinha trabalho contínuo”, disse Marcella.
A batuqueira do Maracastelo explica que a cena da cultura popular em João pessoa não era consolidada e lembrou que, para tocar batuque de rua, não precisa ser músico, basta ser batuqueiro. E essa é a linha do grupo até hoje.
“Começamos com seis pessoas, ninguém tocava nada e em 4 meses a gente já estava em 15 pessoas tocando maracatu e tocando bem. Aí já convidou a galera do Nação Estrela Brilhante do Recife, as duas mulheres da Nação que eram ícones do Estrela de batuque”, explica Marcella. Ela lembra que o grupo começou com todo mundo de fora. “Eu sou de Campina (Grande), eu não tinha família aqui; Mylle era de Aracaju, então se tornou uma família, uma comunidade”, diz Marcella. E continua: “eu não tinha ideia de que o maracatu era tão forte no sentido de movimentar pessoas, a cena cultural, lugar, espiritualidade, de mudar mesmo a cena e foi o que aconteceu. A gente descobriu quem era o presidente da associação, a gente pediu licença, pegou a chave, ficamos com a chave, aí depois que a gente entrou, começou o incômodo. Justamente pelo fato de juntar muita gente, porque não se esperava tamanha organização”.
O Coletivo Maracastelo, hoje, é contemplado pelo Projeto de Extensão PROBEX, da Universidade Federal da Paraíba, Maracastelo – Manifestações Tradicionais Afro-brasileiras no Bairro Castelo Branco – João Pessoa (PB).
A partir do Maracastelo, começou um movimento de organização comunitário no bairro do Castelo Branco. “Primeiro encontro na Associação a gente fez uma limpeza no espaço, tiramos tanto lixo que as pessoas no mercado (público) aplaudiam a gente. Lixo de anos. Não tinha nada. Daí fizemos salinha, colocamos porta, fizemos banheiro que não tinha, nenhum banheiro funcionava; a gente fez festa lá pra arrecadar dinheiro, cada pessoa pagando R$ 2 reais para comprarmos vaso sanitário. Eu nem imaginava um negócio desse”, conta Marcella.
Angela relata ainda como as coisas começaram a ser um problema: “Eu tinha noção de que aquilo ia ter um impacto, mas no universo cultural, não tinha noção que tinha um impacto lá na política partidária. Isso foi completamente novo. Como também não imaginávamos que a associação seria daquele jeito. Ele autorizou a gente usar aos sábados, a gente fez um ofício, botou horário de uso, tudo organizado, quando chegamos no primeiro sábado de oficina, tava tendo uma festa de aniversário lá. A gente percebeu que ali não existia gestão no lugar, mesmo a gente organizando ofícios, horários, tudo certinho. E o que ocorria ali não era pra comunidade. Eles acharam que nosso movimento ia acabar logo, mas o negócio só cresceu”.
Ela ressalta ainda que foi um embate constante, já que, aos sábados, ao chegarem no local para a realização das oficinas, deparavam-se com um ambiente extremamente sujo: “chegávamos no sábado pra ter oficina, só que na sexta tinha tido uma festa, daí tava tudo muito sujo, xixi, cerveja, lixo no chão, aí a gente tinha que lavar a associação inteira, a gente botava saquinho de lixo, ninguém repunha, a gente começou a virar empregado dessa galera”, relatou Angela.
Foi quando decidiram ocupar o espaço e denunciar o que ocorria na associação de moradores do bairro: “não nasceu como uma ocupação, a gente achou que tava travando um diálogo, só que quando entramos e vimos o tamanho da sujeira que era, tanto ideológica quanto física mesmo, a gente começou a fazer a denúncia, isso em 2014. A gente se deu conta da sujeira seis meses depois. A gente começou a convidar outros coletivos para fortalecerem a ocupação. Aí começou a ter capoeira, teatro, estudos sobre vários temas. Criamos um movimento chamado Ocupe AMCAB Cultural; tínhamos atividade todos os dias da semana no espaço, mas quanto mais crescia a ocupação, mais aumentavam as perseguições, tanto por questões político-partidárias como por intolerância e preconceito”, conta Angela.
O Maracastelo aprovou seu primeiro edital de cultura logo que saíram da Associação, três anos depois da fundação do coletivo.
“A gente queria transformar a associação num ponto de cultura permanente, mas estávamos muito desgastadas. Foram três anos de luta diária, a AMCAB tinha muitas irregularidades, incomodamos bastante e recebíamos ameaças. Foi quando decidimos sair de lá”, disse Marcella.
Após a saída, o Maracastelo aprovou um projeto de confecção de instrumentos e passaram a confeccionar alfaias na Casa da Pólvora. “Passamos seis meses lá, foi a primeira vez que fizemos confecção de alfaia e toque percussivo. Na época, a casa da pólvora também tava abandonada. Depois que saímos de lá, começaram a usar o lugar. Isso que é massa, porque movimenta espaços públicos ociosos. A gente costuma fazer várias ocupações, tanto nas ruas como nas escolas, espaços culturais; onde tiver ocioso, a gente junta gente pra entender que quando você quer fazer, você faz. Não tem que esperar verba, não. É só abrir espaço e ir”, frisou Angela.
TAMBORES FEITO POR MULHERES
A confecção de alfaias e instrumentos de maracatu surgiu a partir da necessidade de fazer reparo nos instrumentos. “No início, a gente procurava os homens que tinham aqui para consertar nossos tambores, só que, quando o tambor vinha, era um negócio muito ruim, sendo que eu já sabia como era um instrumento bom. Eles faziam de qualquer jeito e eu comecei a ter muita raiva disso, porque a gente pagava caro e não resolvia o problema. Então a gente começou a fazer uns remendos, sem acabamento, sem ferramenta. Era o básico para a alfaia funcionar. E os instrumentos se multiplicavam. Chegava gente nova, a gente achava que não ia dar os instrumentos, mas o negócio ia se multiplicando, pessoas doaram instrumentos”, explicou Angela.
Assim começou o projeto Alagbê - tambor feito por mulher, onde Marcella e Angela fabricam e fazem a manutenção dos tambores e, nos agbês, além delas, outras duas mulheres que fazem parte do coletivo confeccionam o instrumento.
Ao receber o prêmio de Cultura Popular, o principal investimento feito pelo Maracastelo foi na compra de ferramentas e de equipamentos para fabricação de alfaias e instrumentos. “Compramos esmilhadeira, furadeira, lixadeira, plena elétrica. Essas ferramentas servem hoje para confeccionar agbês, fabricar alfaias. Quem é do Maracastelo e quer ter uma vivência maior, vem na sexta-feira para aprender”, explica Angela.
As integrantes do coletivo levam em média duas semanas para fazer uma alfaia de compensado, e cerca de um mês para uma de macaíba. “Desde o início do grupo fomos guardando macaíba caída em algum lugar e trazíamos pra cá. Quando a gente sabe de um pé que caiu lá em Santa Rita, a gente corre pra ir buscar. É algo sustentável”, completa.
Dois tipos de madeiras são usadas para a confecção de alfaias: “uma no bojo e outra nos aros, couro de bode e as cordas de sisal. Nas alfaias de macaíba, são utilizadas cordas de sisal. A gente faz alfaia pra adulto, pra criança, fazemos manutenções, afinamos tambor”, diz Marcella.
Para confeccionar os agbês, as mulheres do Maracastelo utilizam serra, bombril e faca de grosa. “Os agbês são mais tranquilos de fazer porque não precisam necessariamente de ferramentas elétricas, precisam mesmo é de material”, diz Marcella.
“Esse ano a procura das alfaias tá maior que os anos anteriores. Desde o ano passado passamos a receber mais pedidos. Acho que tá havendo uma criação de cena, coisa que não tinha antes. Agora a gente não divulga, fica só no boca a boca, porque não consegue atender as demandas. Porque além das oficinas, tem a confecção, os eventos, o grupo artístico, as apresentações, o trabalho, então fica mais difícil de produzir mais”, explica Angela.
O que o Brasil de Fato hoje apresenta é a história desse grupo e o ineditismo dessas mulheres que ousam confeccionar instrumentos de maracatu, reativar espaços públicos improdutivos e movimentar a cena da cultura popular da cidade de João Pessoa.
Edição: Heloisa de Sousa