Uma canção bastante conhecida no meio evangélico pentecostal começa a ser entoada na Igreja após pregação baseada na luta entre Davi e o gigante Golias, narração bíblica contida no primeiro livro de Samuel, a partir do capítulo 17.
Homens e mulheres emocionados vibram enquanto cantam a letra. “Deus vai na frente abrindo caminho / Quebrando as correntes, tirando os espinhos / Ordena aos anjos pra contigo lutar / Ele abre as portas pra ninguém mais fechar”. A música “Com Muito Louvor” é de Cassiane, cantora da Assembleia de Deus, lançada em CD do mesmo nome em 1999.
Nada de extraordinário no culto na noite de sábado nesta igreja. Quem conhece as celebrações pentecostais está bem familiarizado com as canções animadas e envolventes, e os brados de “glória a Deus” e “aleluia” que os membros proferem. Vencer os gigantes da vida cotidiana, como Davi fez, é um desafio de cada crente, diz a pastora Cinthya Martins. Primeiro detalhe importante: a igreja é pastoreada por uma mulher.
Há duas décadas, quando os evangélicos eram uma minoria significativa, o pastoreado feminino era majoritariamente rechaçado. Hoje muita coisa mudou. Segundo o último censo do IBGE, em 2010, protestantes eram 22% da população brasileira. A previsão para 2020 é que 30% de cristãos brasileiros professem a fé surgida a partir da Reforma Protestante no século XVI. Pastoras, bispas e até apóstolas estão presentes no cenário gospel atual.
Em determinado momento de seu sermão, a pastora fala como o diabo coloca coisas nas nossas mentes para nos colocar para baixo, como os gigantes tentam atrapalhar nossas vidas. Ela ressalta que não devemos temer Satanás, mas que já teve medo. “Olha, vou contar uma história de minha vida. Eu morria de medo de Satanás. Tinha medo. Sempre fui da igreja, e quando era pequena e via alguma manifestação (exorcismo) tinha medo”, disse. Mas qual era seu medo?
Durante encontro evangélico em Brasília, ela foi convidada a participar do grupo de libertação. Apesar de uma crente dedicada e fervorosa, ela tinha receio do que o espírito maligno pudesse falar de sua vida. “Meu medo era colocar a mão na cabeça de alguém e o demônio falar: ‘Tu? Tu que gostas de mulher?’”. Nas sessões de libertação nas igrejas pentecostais é muito comum a prática do exorcismo. Em algum momento, o espírito que possui a pessoa pode falar com quem está tentando retirá-lo daquele corpo, e revelar aspectos da vida do exorcista. Neste sentido, Cinthya, apesar de nunca ter tido uma experiência homoafetiva, tinha medo.
Apesar de todo receio, ela recebeu um incentivo da pastora que liderava e foi em frente. Segundo seu relato, quando impôs a mão na pessoa, o demônio manifestou-se e saiu a partir do nome de Jesus. Ela atribui o medo que tinha ao próprio diabo. A partir desse dia, seu medo transformou-se em raiva de Satanás, porque era ele quem colocava em sua mente pensamentos de inferioridade e indignidade devido a sua orientação sexual. “Hoje sei quem eu sou, que é o Senhor que faz. Davi também sabia e venceu o gigante.” A reação dos presentes é animada diante da palavra pregada. A maioria, cerca de 30 pessoas, é de homossexuais e lésbicas, inclusive alguns casais.
A relação entre homossexualidade e a religião cristã até hoje é conflituosa
A ideia de pecado ou mesmo de possessão demoníaca como causa da homossexualidade perpassou a história. Segundo o antropólogo Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB), “de acordo com a teologia moral cristã, um homem amar o outro, era pecado mais grave do que matar a própria mãe, escravizar outro ser humano, a violência sexual contra crianças.” O mito da destruição de Sodoma e Gomorra alimentou essa visão. Várias leis foram criadas para criminalizar a relação entre pessoas do mesmo sexo com base na concepção religiosa.
A primeira instituição religiosa a acolher LGBT foi a Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), fundada em 1968, nos Estados Unidos. Hoje no Brasil, não apenas a ICM está presente, como outras surgiram, sobretudo a partir dos anos 2000. Dentre elas, a Igreja Cidade de Refúgio, fundada por Lanna Holder, conhecida pregadora na década de 1990, quando viajava o Brasil dando seu testemunho de libertação da homossexualidade. Muitos LGBT, inclusive eu, a tinham como referência da possibilidade de criar uma nova identidade a partir do processo de “libertação”. Depois fiquei sabendo de sua “queda”, termo usado no meio evangélico para explicar o cometimento de um grave pecado de um líder. Casada com um pastor, divorciou-se. Em 2011, após ter conhecido a Teologia Inclusiva nos Estados Unidos, Lanna e sua esposa Rosania Rocha abrem, em São Paulo, uma igreja para ser refúgio para todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual.
A pastora Cinthya Martins tem 37 anos, é casada com a diaconisa com função pastoral Bruna Alencar desde 2017. Ela teve uma formação evangélica conservadora. Aos 16 anos de idade sentiu o chamado para o ministério. Chegou a liderar 15 células (grupos de pessoas que se reúnem para estudar a bíblia, orar e cantar) na igreja que participava. Tocava no grupo de música, participava da rede de jovens. Foi escolhida para ser pastora. Tudo caminhava para exercer sua vocação sacerdotal. Contudo, foi excluída de todos os trabalhos em razão de sua sexualidade. Conheceu uma igreja inclusiva (nome dado às igrejas que aceitam LGBT) em 2014 e, finalmente, ordenada em 2015. Foi para a Cidade de Refúgio em 2017. Hoje tem a missão de liderar a igreja na capital paraibana.
A Igreja Cidade de Refúgio, em João Pessoa, funciona, temporariamente, no salão do Hotel JR, centro. Os cultos são realizados todos os domingos às 18h00. Cinthya mora em Natal, mas está de mudança para cá, com o objetivo de concretizar o projeto de alugar um espaço onde o templo possa funcionar com a regularidade normal de outros espalhados no Brasil. Esteve durante alguns dias de julho de 2019 na sede da igreja em São Paulo, participando dos oito anos de fundação e de um treinamento pastoral.
Lanna Holder, quando esteve em João Pessoa, no ano passado, para celebrar um culto de santa ceia, disse durante a sua mensagem: “abrir uma Cidade de Refúgio não para quem quer; é para quem quer muito”. Determinou uma data limite: setembro de 2019. Se até lá não fosse possível, a Cidade de Refúgio deixaria de existir na capital paraibana. Os cultos, à época, eram quinzenais, mas pouco depois passou a ser semanal. A igreja está sendo consolidada na capital paraibana. Em breve, estará em um novo local, sendo uma porta para o refúgio de todos e todas que querem viver a fé, independentemente de qualquer diferença física, social, intelectual e, mormente, a de orientação sexual, porque, segundo a pastora Cinthya Martins: “nossa igreja não é gueto. É uma igreja normal, que segue os princípios estabelecidos por Deus para vivermos uma vida abundante e saber que o amor Dele também nos alcançou.”
Edição: Heloisa de Sousa