Paraíba

Coluna

Gertrudes Maria, uma inspiração para o Movimento de Mulheres Negras*

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É essa resistência, secular e atual, individual e coletiva, que nos move.

Década de 1820

Gertrudes Maria, filha de africanas/os, por isso era chamada à época de “crioula” ou “preta”. Nasceu na capital da Paraíba no início do século XIX, tinha a condição jurídica de escravizada, assim como era comum na vida de mulheres negras de tal estatuto social, desde cedo esteve na labuta. Trabalhava no interior da casa de seus escravizadores – Carlos José da Costa e Maria Antonia –, e também como quitandeira, comercializando variados produtos nas ruas da cidade, atualmente, denominada João Pessoa, na Paraíba, como na Rua das Trincheiras e adjacências, negociando “com verduras, frutas, e o que mais lhe permiti[ss]em suas posses”.[1] Circular pela espaço urbano permitiu à Gertrudes Maria tanto a formação de um pecúlio/poupança quanto a formação de uma rede de sociabilidade. Esta afirmação pode ser verificada a partir da leitura de manuscrito com ação cível instaurada em 1828, na qual seu curador/representante procurou se opor ao “embargo de penhora” contra seu proprietário (Carlos José da Costa), que estava endividado e colocava em risco a sua liberdade condicionada, mas possível naquele contexto histórico, em que poucos questionavam a escravização de mulheres, crianças e homens africanos e seus descendentes. Sua liberdade foi alcançada após “negociação” com Carlos e Maria Antonia. Mas teve que aceitar as regras do sistema escravista da primeira metade do século XIX, uma vez que a decisão de como seria a libertação do sujeito escravizado pertencia ao/à escravizador/a.


“Negras de Rio de Janeiro” (Cerca de 1830), Johann Moritz Rugendas. / Acervo Digital da Biblioteca Nacional: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.html

No caso de Gertrudes Maria, ela conseguiu negociar uma liberdade precarizada, mas que com astúcia e sendo pró-ativa conseguiu livrar-se do cativeiro por mais de uma década. Vamos aos fatos. Conforme o acordo possível com seus proprietários, ela pagou 50% do seu valor – 100 mil réis – , o restante deveria ser quitado com seus serviços, “servindo” os donos até a morte de ambos. Ou seja, uma liberdade sonhada, mas incerta se seria concretizada, pois ela poderia falecer antes deles. Entretanto as estratégias construídas por Gertrudes Maria nos indicam que ela prezava a sua conquista, mesmo que precarizada e parcial, visando a um futuro com liberdade para si ou para suas/seus filhas/os e outros descendentes. Assim, entre os anos de 1828 e 1842, como dito, quando poucas pessoas condenavam a instituição da escravidão e a sociedade brasileira considerava legítima a prática de escravizar pessoas, Gertrudes Maria moveu uma ação judicial contra seu senhor e sua. Para tanto, contou com o apoio de homens da elite que atuaram como advogados em sua defesa, foram eles: Luís Nogueira Moraes, José Lucas de Souza Rangel e Francisco de Assis Pereira Rocha,  pessoas pobres e das camadas médias que testemunharam em sua defesa durante o julgamento, em 1830/1831. O último advogado, Pereira Rocha, acompanhou seu processo por mais de uma década (1830-1842). Durante a audiência, salientava que era para ela se contrapor ao “abominável cativeiro” e formar pecúlio para sua libertação, a qual foi à “custa de suores, sacrifícios e muitas fadigas”. Os algozes da libertanda sob condição compunham-se de um sujeito que integrava outra instituição, a Igreja, chamado Frei João da Encarnação – que procurava ser ressarcido da quantia de 176$190 réis – e um leigo, José Francisco das Neves – que buscava receber cerca de dezessete mil reis. Somando as duas quantias era um valor razoável, suficiente para aquisição de um terreno na capital da Paraíba.

 Dos diversos interesses envolvendo tal demanda jurídica, de um lado havia um senhor e senhora de uma cativa que procuravam manter o único “bem” que poderia garantir sua sobrevivência; de outro, uma mulher negra liberta sob condição e, por fim, credores de Carlos J. da Costa que queriam receber pagamento de dívida e não tiveram dúvida em recorrer à justiça na tentativa de concretizar tal objetivo. Talvez não contassem com a iniciativa de Gertrudes Maria. Ela buscou apoio para manter sua precarizada liberdade. De fato, apesar de ela ter perdido a ação judicial, após o julgamento ocorrido em 1831, seu advogado Francisco de Assis P. Rocha apelou ao “Juizo Superior da Relação”, em Pernambuco. Assim ela esteve sob proteção de um depositário – indivíduo que tutelava um/a escravizado/a durante uma ação judicial – mantendo-se distante de seus escravizadores e “gozando da liberdade” de 1831 até 1842, quando um dos credores de Carlos J. da Costa – José F. das Neves – reativou o processo no referido ano. Todavia, não temos informações sobre o desfecho da disputa da posse de Gertrudes Maria, que, na década de 1840, vivia com um homem indígena e tinha duas crianças.

Embora não tenha conhecimento do desfecho do caso de Gertrudes Maria, a sua história mostra o seu protagonismo e a considero emblemática por representar a exploração do trabalho das mulheres cativas que beneficiaram um determinado grupo social. Ela representa também a resistência de muitas outras mulheres escravizadas de várias regiões do Brasil que, com suas ações políticas no interior do escravismo, redefiniram suas condições sociais e jurídicas, afirmaram a sua humanidade e tiveram a coragem de defender seus “direitos” e, enfim, lutaram por liberdade, a partir da construção de estratégias na adversidade, e conseguiram conquistar, mesmo que temporariamente, novos espaços na sociedade escravista.**

**Para conhecer histórias das mulheres negras brasileiras, sugerimos como leitura o livro Mulheres Negras no Brasil escravista e do pós-emancipação, organizado por Giovana Xavier; Juliana B. Farias; Flávio dos S. Gomes, publicado pela Editora Selo Negro de São Paulo, 2012.

 

2020

Passados quase duzentos anos da experiência de resistências de Gertrudes Maria, podemos afirmar que sua história nos inspira e nos impulsiona a mantermo-nos nas lutas sociais,[2] posto que nós, mulheres, ainda não conquistamos a plena cidadania na sociedade brasileira. No nosso caso, negras mulheres, lutamos por nossa humanização e o direito de ter direitos! Somos mais de 25% da população brasileira, quase 50 milhões e a jornada de luta continua. Afinal, “nossos passos vêm de longe” e nos atualizamos à resistência em sistema de capitalismo neoliberal e de extremas iniquidades sociorraciais.


Movimento de Mulheres Negras na Paraíba, registro de 2018 / Reprodução

Mantemos as reivindicações presentes na “Carta das Mulheres Negras - 2015” e, assim, prosseguimos na na resistência por: “direito à vida e à liberdade, promoção da igualdade racial, direito ao trabalho, ao emprego e à proteção das trabalhadoras negras em todas as atividades, direito à terra, território e moradia/direito à cidade, justiça ambiental, defesa dos bens comuns e não mercantilização da vida, direito à seguridade social (saúde, assistência social e previdência social), direito à educação, direito à justiça, direito à cultura, informação e à comunicação e segurança pública”. [3]


Movimento de Mulheres Negras na Paraíba, registro de 2019 / Divulgação


Logomarca Bamidelê / Divulgação

É essa resistência, secular e atual, individual e coletiva, que nos move. Estamos sempre a esperançar/Bamidelê, reinventando nossas utopias por um Brasil “sem racismo e violência e pelo bem-viver”! E neste mês de março de março de 2020, período de reafirmar as lutas do Movimento de Mulheres e Feministas de todo o país, nós da Paraíba, fazemos ressoar nossas vozes para dar um basta a todos os tipos de violências e somarmos forças para a defesa dos nossos Direitos.

Gertrudes Maria, Presente!

Marielles, Presentes!

AXÉ! HAMBA!

 

Notas

[1] As informações sobre o processo envolvendo Gertrudes Maria estão na Ação Cível de Gertrudes Maria (1828-1842), disponível no Arquivo do Tribunal da Justiça/Paraíba. Para mais informações dessa ação jurídica, consultar o terceiro capítulo de minha pesquisa de mestrado, em ROCHA, Solange P. Na trilha do feminino: condições de vida das mulheres escravizadas na Província da Paraíba (1828-1888). Recife, Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Pernambuco, 2001.

[2] Atualmente, Gertrudes Maria nomeia: um Centro de Referência de Educação Infantil, a CREI Gertrudes Maria, uma escrava liberta no século XIX (2009), localizado no Jardim Veneza, em João Pessoa/PB; o “Núcleo Gertrudes Maria” na Paraíba integrante do movimento internacional denominado Marcha Mundial das Mulheres (2016), entre outras homenagens, foi lembrado no Prêmio Paraibano de Fotografia (2014), promovido pela Bamidelê: organização de mulheres negras na Paraíba.

[3] A Carta da Marcha das Mulheres Negras (2015) está disponível na página da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras: http://amnb.org.br/biblioteca.asp?id=0#ancora.

* Autora: Solange P. Rocha. Historiadora e professora na Universidade Federal da Paraíba., onde faz parte do Departamento e do Programa de Pós-graduação em História e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-brasileiros e Indígenas/NEABI. Integra e é cofundadora da Bamidelê: Organização de Mulheres Negras na Paraíba.

 

Edição: Heloisa de Sousa