“Todo camburão tem um pouco de navio negreiro” – Marcelo Yuka.
Um cidadão volta para casa, vindo do trabalho, encontra-a cravada de balas pelas paredes e percebe que seu filho de catorze anos não está lá. Desespera-se, tenta vislumbrar seu paradeiro. Seguem-se dezessete horas da máxima aflição de um pai, ao cabo das quais ele descobre que seu filho fora assassinado com um tiro de fuzil. Aconteceu no Brasil: João Pedro é o nome de mais uma vítima da violência do Estado. Episódios como esse são evidência de que o Brasil não fechou o ciclo de seu mais importante fenômeno sócio-político, que está na base de sua formação: a escravidão.
O Brasil foi a maior sociedade escravocrata do planeta. Os escravos libertos, sem ter para onde ir, começaram a ocupar as periferias das cidades grandes brasileiras, iniciando o processo de segregação de raça e de classe que nos é tristemente evidente até hoje.
Desde então, as classes média e alta da sociedade brasileira “toleram” a existência de uma espécie de seres humanos que eles julgam, de maneira natural e fatalística, inferior em todos os sentidos.
São os marginais, os maloqueiros, os trombadinhas, estes cujas trajetórias devem ser evitadas, trocando-se de calçada assim que a oportunidade se apresentar. No Brasil, nunca deixou de existir uma espécie de normalização do “nós contra eles”, a eternização da condição de inferioridade daquelas pessoas. Na linguagem do sociólogo Jessé Souza, estes indivíduos, aos olhos das elites da sociedade, não são cidadãos. São a subcidadania brasileira.
Indícios da continuidade do desejo de humilhação e do desprezo que os abastados nutrem com relação à classe subcidadã perpetuam-se, da escravidão do passado até sua forma ainda perniciosa nos nossos dias.
Até pouco tempo atrás, as moradias das classes privilegiadas eram projetadas com um aposento para as “empregadas”.
Na minha própria carreira, a da diplomacia, até há poucos anos havia previsão legal para que o diplomata, quando removido para servir em outro país, pudesse designar alguém como “serviçal” - sim, este é o termo que constava da normativa - e assim tinha as despesas deste pagas pelo governo. Quem não lembra da capa da revista Veja de junho de 2015, um rapaz branco de olhos claros, com expressão algo contrariada por ter de lavar a louça após a aprovação das recém sancionadas novas regras para o trabalhador doméstico? Esses exemplos são ecos de um passado que insiste em nos assombrar, do qual os donos do poder não parecem nenhum pouco interessados em extinguir.
Sobre esta última afirmação, cabe maior reflexão. Todas as vezes em que a distância entre a subcidadania e a classe imediatamente superior (a classe média) encurta, esta fica em polvorosa e uma reação acontece.
Como sabemos, a classe média não quer direitos. Ela quer privilégios.
O mínimo ensaio de maior mobilidade social ou o mais remoto sinal de ascensão das classes baixas já são suficientes para deixar a classe média acuada, assustada.
Desta maneira, sentindo-se “podre de rica” e com medo de perder a sua “exclusividade” de conhecer as variações das uvas de seus vinhos prediletos, a classe média torna-se presa fácil para discursos fascistóides.
Isto ficou claro na última década e meia, com o mínimo de dignidade que os governos do Partido dos Trabalhadores deu à classe marginalizada. Como mostra com primor a personagem de Regina Cazé em “Que horas ela volta?”, o antipetismo nasce quando o filho da empregada passa na faculdade onde a filha da patroa não consegue entrar.
A morte de João Pedro é mais um exemplo da perpetuação da escravidão. Alie-se a isto outro pilar da nossa história que ainda não foi resolvido – a ditadura militar – e temos o quadro de violência cotidiana do Estado contra os subcidadãos brasileiros. Mais de três quartos das vítimas de homicídios no Brasil são negros e negras. Nas favelas brasileiras, as novas senzalas, a escravidão e a ditadura nunca acabaram.
*Mozart Grisi Correia Pontes é diplomata.
As opiniões expressadas pelo autor não necessariamente coincidem com a posição do Ministério das Relações Exteriores.
Edição: Cida Alves