Na semana em que o futebol tomou pra si o protagonismo das ações em defesa da democracia e contra o governo fascista de Jair Bolsonaro, conversamos por email com Irlan Simões. Ele é jornalista e mestre em Comunicação e um dos representantes mais relevantes do debate sobre mercantilização do futebol e ‘cultura torcedora’, ou como ele mesmo define “estudioso da economia política do futebol, histórico de desenvolvimento da indústria do futebol, mercantilização do futebol e as reações dos torcedores a esses processos, arenas multiuso, clube-empresa, culturas torcedoras, política de clubes, universo urbano e temas correlatos”. Além disso, Irlan também toca o podcast ‘Na Bancada’ junto com o historiador Matias Pinto.
Além do histórico acadêmico, o pesquisador também tem sua atividade ligada ao clube de coração: “Fui conselheiro do Vitória entre o final de 2016 e meados de 2019, em um momento de mudanças no clube, que aprovou um novo estatuto que conferia direito de voto aos então sócio-torcedores. Esse processo foi resultado de um longo histórico de luta de diversas experiências de movimentos de torcedores, que se arrastava desde 2010”, explica.
BdF - Em artigo, no site da revista Época, assinado por Pedro Trengrouse e José Roberto Afonso, eles afirmam que a única saída para o futebol pós-pandemia seria transformar os clubes em empresas. Você concorda? Se discorda, quais opções que temos?
Irlan - Discordo plenamente, até porque o próprio artigo foi incapaz de dar subsídios para essa afirmação. A manchete não correspondia ao conteúdo do texto, basicamente.
Não conheço muito bem o histórico de um deles, mas de outro eu posso apontar claramente que trata-se de um lobbista que promove uma narrativa fantasiosa sobre a realidade dos clubes como empresa, levanta dados e casos de forma distorcida e os posiciona de forma conveniente para reforçar suas argumentações favoráveis a esse processo.
Sendo que por trás disso tudo está uma série de interesses privados, já que ele é sócio da empresa mais bem posicionada no mercado local para atuar com serviços, consultoria e gestão de clubes associativos que desejem transferir parte ou a totalidade de seus ativos para uma sociedade empresária, para negociá-los com eventuais grupos privados.
O livro existe exatamente para desconstruir aquilo que eu chamo de "oito pontos do escopo ideológico" que compõem a narrativa favorável à transformação dos clubes em empresas. Esse sujeito ao qual me refiro, talvez seja o mais impetuoso dos lobbistas, e ele trabalha exatamente em cima desses pontos de forma exaustiva.
Para ilustrar o que ele faz, e a nocividade de como esses argumentos são colocados a favor de interesses privados: eles se deram ao direito de dizer no texto que a compra do Newcastle United se trata de um aporte feito por "investidores". Qualquer ser humano minimamente informado sabe que se tratou da compra do clube por um Fundo Soberano de uma teocracia monárquica do Oriente Médio, cuja relação com o negócio-futebol é absolutamente zero. Usar o movimento da Arábia Saudita sobre o Newcastle United para ilustrar que "mesmo na crise, investidores estão comprando", é de uma desonestidade atroz.
Há uma infinidade de contingências que nunca são colocadas em questão nesse tipo de texto. O livro "Clube Empresa" é exatamente um compilado desses casos reais, concretos, que estão ao nosso lado, mas que são convenientemente omitidos do conhecimento do público interessado em futebol. O torcedor quer bola na rede e taça levantada, e é muito compreensível que "deseje" que seu clube seja comprado por um grande investidor que leve seu clube às glórias.
Ele só precisa ser informado de que não é assim que a banda toca e que o futebol brasileiro está muito longe das características que motivam esses megainvestidores a comprarem clubes. Sendo assim, mais interessante do que advogar pela transformação de clubes brasileiros em empresas vendendo areia no deserto para o torcedor, mais honesto e procedente seria discutir mecanismos e ferramentas para que os clubes brasileiros deixassem de ser tão mal geridos e deficitários (lembrando que maior parte dos clubes-empresa no mundo são deficitários, principalmente os vencedores).
Queria que você falasse um pouco sobre democracia torcedora. Se a necessidade de contar mais com o torcedor para superar um momento de crise pode ajudar a mudar a política dos clubes?
Sou de uma linha que defende a abertura política do clube como uma das ferramentas possíveis para que se adotem práticas benéficas para a instituição. Não há fórmula mágica, mas a democracia é um instrumento de controle e fiscalização que nunca inventaram um melhor. Dar ao torcedor associado o direito de participar das decisões é uma forma de ampliar o poder de fiscalização. Mas não são ferramentas que podem andar isoladas.
Há algumas pessoas que há algum tempo refletem sobre como esses mecanismos podem funcionar, são dificuldades encontradas em qualquer sistema político, mas que podem ser colocadas em prova e funcionalidade dentro de uma instituição menos complexa como um clube, até porque sua finalidade é formar bons times, ganhar títulos e retornar emoções aos seus torcedores.
A grande questão é como fazer isso uma realidade sem comprometer financeiramente o futuro da instituição. Por isso que o fortalecimento de órgãos como um conselho fiscal, dando-lhe independência e liberdade de atuação, a aplicação de mecanismos como compliance, regras de transparência, "freios e contrapesos" ao poder executivo, que impeça gastança generalizada, interferência de interesses privados de agentes e jogadores na gestão de um clube, ou mesmo no trato torcida. Tudo isso é parte de um processo de amadurecimento político da instituição que deve ser acompanhado de mecanismos legais que façam dessas ferramentas válidas e resultantes de algo concreto.
Não é o modelo jurídico que vai dar ao clube a possibilidade de adotar essas práticas. No entanto, em uma associação democrática um mal gestor não se cria por muito tempo, porque ele passará em algum momento pelo crivo dos sócios e conselheiros. Em um clube com proprietário não há qualquer margem estatutária para que haja essa mudança de rumos. O clube-empresa é uma propriedade. Fim.
Pra terminar queria que você falasse um pouco do seu livro 'Clientes vs Rebeldes' e do 'clube empresa' que pelo que li no seu twitter está em pré-venda.
"Clientes versus Rebeldes" é o livro resultado da pesquisa de mestrado que desenvolvi entre 2015 e 2017. A ideia era investigar aquele que considerei o ciclo final da fase inaugural das novas arenas multiuso da Copa do Mundo 2014. Para mim aquele momento encerraria o caráter de "novidade" desses novos equipamentos, e aí sim poderíamos começar a analisar concretamente qual foi o legado delas.
Não houve mudança considerável do público, e uma vez que os preços cresceram abruptamente, intensificando uma tendência que já existia antes mesmo das arenas, o que se pode dizer é que o processo de elitização do público foi real, mas não resultou no aumento do público desses estádios.
Em contrapartida a essas novas modalidades de clientelização do torcedor que o modelo de consumo esportivo embutido nas arenas era promotor, também destaquei as experiências contrárias à transformação dos estádios, naquele público "rebelde" que se formava como protesto ao novo modelo imposto. O livro Clube Empresa já está pronto e foi enviado para a gráfica. Já encerramos a fase de pré-venda com preço promocional.
Edição: Heloisa de Sousa