Paraíba

Coluna

Sobre as "nossas" estátuas e nosso passado-presente

Estátua/Busto de André Vidal de Negreiros na praça em sua homenagem, popularmente conhecida como Ponto do Cem Réis – João Pessoa/PB. Reinaugurado em agosto de 2009, após revitalização da área urbana. - Arquivo
A história da escravidão no Brasil ainda tem muito por ser contada

Sobre as "nossas" estátuas e nosso passado-presente

 

Por Matheus S. Guimarães*

 

As lutas antirracistas que se espalharam pelo mundo, após a morte de George Floyd (afro-estadunidense) e o simbólico ato de derrubada da estátua de Edward Colston (1636-1721), inglês e traficante de africanos escravizados, suscitaram e ampliaram um debate sobre se deveríamos ou não derrubar estátuas. Diante dessa discussão, surge uma pergunta: por que construímos estátuas para homenagear pessoas? Toda sociedade se relaciona, de alguma forma, com seu passado. As várias formas de se relacionar, coletivamente, com o passado perpassa um grande jogo de disputas. Quem se deve homenagear? O que devemos lembrar?

As estátuas, nomes de ruas e inúmeros outros monumentos que conhecemos expressam essas disputas. Em geral, no Brasil, a maior parte dos nomes que são lembrados e que, de alguma forma, fixa na cabeça das pessoas é de homens, brancos e ricos. Quase todos das elites. Isso não se deu por acaso, é resultado de séculos de construção de uma memória coletiva, de como nossa sociedade lida com o passado. No nosso país, um dos que mais importou mulheres, crianças e homens escravizados do continente africano, vários são os homenageados que tinham envolvimento com o tráfico de escravizados, mas que são lembrados por “atos gloriosos”.

A história da escravidão no Brasil ainda tem muito por ser contada e, geralmente, ela não aparece nas estátuas e nomes de ruas de nossas cidades. Vamos pensar o caso da Paraíba, Nordeste do Brasil. Quem anda pela cidade de João Pessoa (diga-se de passagem: o seu nome, por si só, traz um debate sobre nossa memória) deve conhecer um dos espaços públicos mais importantes: o popular Ponto de Cem Réis. Espaço de grande pulsação da vida da cidade, lá, onde diariamente transitam pessoas, ocorrem eventos culturais e políticos, existe um grande monumento no meio da praça. Uma homenagem a André Vidal de Negreiros (c.1606-1680). Aliás, esse é o nome oficial da praça, desde 1924. Considerado como um herói, ele foi um dos líderes das guerras (1645-1654) que levaram à expulsão dos holandeses do Brasil e se transformou em um personagem político influente no período em que éramos colônia.


Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos demolida, onde hoje é o Ponto de Cem Réis (Praça Vidal de Negreiros), em imagem de Walfredo Rodriguez (1994). / Arquivo

Durante muito tempo, essa foi a parte que se lembrou de André Vidal: um herói nacional. Mas lembrar dele como herói traz um esquecimento: Negreiros (vejam só o nome...) também articulou a retomada do tráfico de pessoas de Angola, que na época também esteve sob domínio holandês. Para os senhores de engenhos do Brasil, como ele, não fazia sentido reconquistar apenas Pernambuco e Paraíba, tinham que ter Angola. Sabiam que a riqueza do Brasil dependia de escravos africanos. André Vidal de Negreiros enriqueceu muito às custas do tráfico de africanos e do trabalho de negros escravizados em seus engenhos. Essa parte quase nunca foi contada.

Algo que merece ser ressaltado nesse caso é que, onde hoje é a praça Vidal de Negreiros (o Ponto de Cem Réis), havia uma grande igreja: a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, sede de uma irmandade de negros africanos, fundada em 1711.[1] No início do século XX, a igreja foi demolida para dar espaço às mudanças na urbanização da cidade. Derrubou-se uma igreja construída por negros. Construiu-se, anos depois, uma estátua em homenagem a um senhor de engenho, envolvido com o tráfico de pessoas africanas. Ironias do destino? Não. Escolhas de quem se deve homenagear e daquilo que se deve destruir e apagar da memória. Um exemplo, dentre tantos, de como os espaços da cidade, que também são espaços de memória, estão em disputa.

A existência da estátua de André Vidal de Negreiros não faz, por si só, que sua história de envolvimento com o tráfico de africanos  seja contada. Acaba por celebrar uma imagem positiva de nosso passado colonial e silenciar sobre outros aspectos, como a escravidão. Quem anda pelo Ponto de Cem Réis não viu e não conhece a grande igreja de africanos, mas verá uma estátua e uma placa em homenagem aos “grandes feitos” de André Vidal.

Essas estátuas em homenagem a alguns personagens de nossa história têm como objetivo manter viva uma memória de “grandes homens”, vistos como heróis que ajudaram a construir uma certa história de Brasil. Por sua vez, as construções africanas e de seus descendentes foram (e ainda são) destruídas, com o objetivo de apagar as experiências vividas pelas pessoas negras. Um outro exemplo disso, também em nossa cidade, são as constantes depredações da estátua em homenagem a Iemanjá, uma divindade de religiões afro-brasileiras, na praia de Cabo Branco.

Debater sobre nossas estátuas diz respeito às formas como lidamos com o nosso passado. Precisamos, cada vez mais, pensar sobre “nossas” estátuas e sobre como nossa memória é construída. Precisamos, cada vez mais, falar sobre o nosso passado escravista, um passado que se faz presente.

 

[1] Mais informações sobre a Igreja e Irmandade Nossa Senhora do Rosário, consultar o capítulo 4 do livro digita do autor, Guimarães, Matheus Silveira. Diáspora africana na Paraíba: trabalho, tráfico e sociabilidade na primeira metade do século XIX. João Pessoa: Editora do CCTA, 2018. Disponível no seguinte link: http://www.ccta.ufpb.br/editoraccta.

 

Referências

GUIMARÃES, Matheus Silveira. Diáspora africana na Paraíba: trabalho, tráfico e sociabilidade na primeira metade do século XIX. João Pessoa: Editora do CCTA, 2018.

PESSOA, Ângelo Emílio da Silva. Vidal de Negreiros: um homem do Atlântico no século XVII. In: OLIVEIRA, Carla Mary S.; MENEZES, Mozart Vergetti de; GONÇALVES; Regina Célia. Ensaios sobre a América Portuguesa. João Pessoa: Universitária, 2009, p. 53-67. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=osJSCwU1focC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false

RODRIGUEZ, Walfredo. Roteiro sentimental de uma cidade. João Pessoa: A União, 1994 (1ª Edição 1962).

SILVA, Ana Beatriz R. B. André Vidal de Negreiros: a necessidade de construção de um herói legitimamente paraibano. Sæculum – Revista de História, n. 14, 30 jun. 2006.

SILVA, José Flávio. Progresso e destruição na cidade da Parahyba: cidade dos jardins. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2009.

 

*Doutorando em História/UFPE e Professsor de Educação Básica/João Pessoa/PB

Edição: Heloisa de Sousa