Paraíba

CULTURA POPULAR

Coco de Roda Novo Quilombo lança CD "Da Brincadeira à Resistência"

Após 30 anos de história, a comunidade tem seu primeiro registro oficial

Brasil de Fato | João Pessoa - PB |
Coco de Roda Novo Quilombo | Reprodução - Foto


Samba negro / branco não vem cá / se vier / pau há de levar | Eu vou rachar os pés de tanto sapatear / de dia tá no açoite / de noite pra batucar

O Coco de Roda Novo Quilombo lançou seu primeiro disco "Da Brincadeira à Resistência" nesta segunda-feira (15) na plataforma do Youtube. Localizado no território Gurugy/Ipiranga (Conde-PB), o grupo tem cerca de 30 anos de festejos e brincadeiras. A localidade é um importante espaço de resistência cultural quilombola da grande João Pessoa. (O território foi certificada em 08 de setembro de 2006 pela Fundação Cultural Palmares, com 50 famílias). 

Capa do disco  "Da Brincadeira à Resistência" Coco de Roda Novo Quilombo. Arte da capa: Aline Maria

O disco foi gravado há cerca de cinco anos, quando o Coletivo Jaraguá fazia a pesquisa ‘Museu do Patrimônio Vivo de João Pessoa e da Grande João Pessoa’, e conseguiu articular a captação das músicas para formar um disco. Recentemente, mesmo em meio a uma pandemia, entrou em cena o Grupo de Estudos Coco de Roda Acauã que reanimou o projeto para fazer o lançamento. 

O álbum, feito por muitas mãos, é uma produção colaborativa entre o Coco de Roda Novo Quilombo, a Produtora Musical Gota Sonora, o Coletivo Jaraguá e o Grupo de Estudos Coco de Roda Acauã.


Dança do Coco de Roda/ Foto: Reprodução

'Está disponível para quem quiser dançar, cantar, compartilhar'

Ana Lúcia Rodrigues, a Ana do Ipiranga/Gurugy, é a principal liderança do Coco e conta os passos do projeto do disco. Ela relata que, na época, o coletivo Jaraguá fazia a pesquisa do ‘Museu do Patrimônio Vivo’ e reuniu informações sobre a cultura, a arte, a culinária e o comportamento dos quilombolas, com a participação de toda a comunidade. “Eles nos falaram que o projeto também dava direito à gravação da matriz de um disco com 22 músicas. Fizemos a gravação na época e guardamos para lançar em outra oportunidade, e finalmente chegou! E foi uma felicidade muito grande porque é num período de pandemia”, relata Ana.

Zé Silva, do Coco de Roda Acauã, fala da felicidade desse momento: “É importante esse resgate para mostrar que existe uma tradição que não começou ontem, nem anteontem, mas que existe há muito tempo aqui na Paraíba.

Um resgate desses materiais é também a construção da identidade, tanto da Paraíba, como de grupos mais novos que escutam os grupos mais velhos

A gravação foi feita logo após o falecimento de uma figura de extrema importância para o coco: Dona Lenita, mãe de Ana, que havia partido há três meses. “A gente ainda estava bem estremecidas mas conseguimos fazer”. A irmã de D. Lenita, D. Lenira faz parte do grupo e é uma enciclopédia viva: “É quem nos conta as histórias, quem nos traz aqueles cocos das antigas”, descreve Ana.


Festa do Coco costumava reunir de 500 a 1000 pessoas no Quilombo Ipiranga/Gurugy | Foto: Reprodução

Após o lançamento a ideia é tentar levantar recursos para fazer o CD físico e o novo Pavilhão do Coco: “Tá todo mundo pedindo (o disco físico) e está disponível para quem quiser dançar, cantar, compartilhar. É de vocês, é do povo. E a gente só pede a contrapartida que é uma ajuda para a Vaquinha online, para a construção do novo pavilhão do coco”. 

Ana se diverte falando sobre as dificuldades do grupo com as novas tecnologias: “A gente quer fazer uma Live, mas não sabe por onde começar, como é que se faz. Não sabemos criar um Instagram, então vem uma equipe da universidade para nos ajudar com isso”.


Cartaz de uma das Festas do Coco (Na foto, Ana Do Ipiranga/Gurugy com a tia, D. Lenira) Foto: Reprodução

Sobre o disco 

Com músicas antigas e novas, a maioria das composições é do próprio grupo. Tem participação de Ismael (que na época tinha sete anos), D. Lenira, e também Janduí, mestre cantador. “É um disco muito gostoso de se ouvir. Aquela música de coco que quando a gente toca só falta pegar fogo na roda”, comemora Ana.

Tem também músicas antigas, do mestre Luiz de França, “desses Mestres mais antigos que não existe mais, não está mais entre nós, só nas lembranças e a gente nem sabe dizer há quantos anos atrás”. São cocos feitos há muito tempo mas que estão sempre em evidência. 

É o caso de Samba Negro. (Samba negro / branco não vem cá / se vier / pau há de levar | Eu vou rachar os pés de tanto sapatear / de dia tá no açoite / de noite pra batucar). “Eu acredito, e a minha tia conta, que foi uma madrinha dela que veio de Pernambuco, e minha mãe e minha tia aprenderam a letra. É um dos cocos mais animados quando a gente canta. E não deixa de ser um grito político”, destaca Ana.

Segundo ela, o historiador Wellington Santana afirmou que esse coco era cantado no Quilombo dos Palmares (1690) - o maior quilombo que existiu na América Latina, construído na região do atual estado de Alagoas, e que chegou a reunir cerca de 20 mil habitantes.


Reprodução / Foto

Construção do novo galpão

O terreno para construção do  novo Pavilhão do Coco foi conseguido através de doação. Na última quinta-feira (11) a comunidade recebeu o projeto arquitetônico do espaço. O Coletivo Maracastelo vem acompanhando desde o início as discussões sobre a transição para um novo Pavilhão.

Ângela Gaeta, coordenadora do Coletivo Maracastelo, conta como se deu a articulação: “A gente entrou em contato com o Pedro (Pontes) da Trama que trouxe muita sensibilidade e respeito à cultura, e eu acredito que, para o pessoal da arquitetura, ter contato com a cultura popular através de um projeto como este, é muito rico e é um diferencial”, pondera Angela.

Ela considera que o projeto se tornará um polo cultural paraibano:

Ele é o grande pavilhão da cultura popular paraibana porque a Ana tem uma expressão enorme aqui no estado, e está se empoderando disso.

"Ela faz articulação com vários grupos da Paraíba, desde coco, ciranda, lapinha, e recebe pessoas de outros estados com frequência. Além disso, Ana tem vários trabalhos sociais: com as mulheres artesãs que fabricam biojóias, com as crianças (Coco de Roda Infantil Clamores Antigos) junto com o Museu, e também o grupo de idosas Novo Horizonte”, relata Angela. 

Formado por estudantes de arquitetura e professores, o Trama é um escritório modelo de Arquitetura da UFPB, e foi acionado pelo coletivo Maracastelo para construir o plano: “O projeto do Pavilhão é um espaço que abriga a vivência porque cultura popular se baseia principalmente nisso”, comenta Pedro Pontes.


Projeto do novo Pavilhão do Coco / Imagem

 


Projeto do novo Pavilhão do Coco / Imagem

O projeto conta um grande salão coberto, além de uma pracinha, uma portaria e uma área de lazer com mesinhas e bancos. Também terá cinco barracas, uma que servirá para venda de biojóias e quatro destinadas à venda de comidas e bebidas. Vai ter também alojamento para 12 pessoas, banheiros com acessibilidade, espaço para guardar os instrumentos e uma cozinha compartilhada. O estacionamento fica na parte de fora, no campo de futebol. Uma Vakinha online já está funcionando para levantar fundos para a construção. A meta é conseguir R$ 40 mil, e reunir esse valor com materiais oriundos do antigo galpão para realizar a construção do novo Pavilhão.

Encerramento do salão antigo

O Barracão do Coco de Roda Mestra D. Lenita foi fechado por decisão da família de Ana. Segundo ela, o espaço estava ficando arriscado por conta do uso de drogas, o que causou intolerância  e brigas internas. Apenas os festejos foram encerrados. O museu quilombola, no entanto, continuará aberto à visitação, o que formará um circuito quilombola englobando o novo Pavilhão, o museu, trilha ecológica e a caminhada dentro do Quilombo. A visitação de escolas, além do Projeto de Leitura e o Projeto de Livro Artesanal permanecem. A  prefeita de Conde, Márcia Lucena, colocou-se à disposição para ajudar na fundação do novo espaço.


Reprodução / Foto

Coletivo Jaraguá 

Nara Santos, pesquisadora da cultura popular e vice-presidenta do Coletivo Jaraguá, fala da importância do disco nesse momento histórico: “A gente considera que é muito importante, neste momento, o CD vir à tona. A comunidade do Ipiranga/Gurugi tem essa festa na mão da família de Ana há mais de 30 anos.

E no momento que a gente atravessa uma grande onda racista no país é importantíssimo que a gente se volte para uma comunidade quilombola e que a gente dê foco para ela”, defende Nara.

Ela conta que o coletivo Jaraguá é formado por pessoas que vivem intensamente a cultura paraibana, são brincantes de alguns grupos, e também pesquisadores que se preocupam em contribuir e não apenas em extrair informações de cunho antropológico das comunidades: “Refletimos sobre a importância de não se comportar apenas como pesquisadores que vão lá, pesquisam, fazem dissertação, obtém um título qualquer e depois esquece a localidade”.


Museu Quilombola / Foto: Reprodução

A ideia central, segundo ela, é devolver para a comunidade algo que a fortaleça. “Na época, conseguimos articular com Renato Oliveira, que é do Estúdio de Gravação Gota Sonora, para gravarmos o disco sem financiamento algum, e Renato captou e organizou, mas não encontramos recursos para prensar, e então ficou na gaveta. E aí veio esse grupo de jovens pesquisadores e ativistas culturais e deram os passos para lançar, providenciaram a capa, Renato Oliveira fez uma nova mixagem, e aí está essa beleza”, conta Nara.

Agora é a felicidade de ver o resultado, finalmente: “Estamos muito felizes com o resultado porque, depois de cinco anos, vemos ele materializado nas redes e com muita repercussão. E acho que essa é a nossa maior recompensa. E desejamos vida muito longa para o coco do Ipiranga/Gurugy e para todos os brincantes do coco de roda!”

Ouça aqui o Disco:

 

Making off

 

 

 

Edição: Heloisa de Sousa