*Por Jadiele Berto
A reflexão sobre as mulheres negras carece do reconhecimento de uma luta histórica pela vida. As mulheres negras carregam a marca da história da experiência negra nas Américas, como bem fala Valdeci Nascimento. Temos como ponto de partida a ancestralidade que nos move frente à história de quase 400 anos de escravidão, e diversas construções do que projetam para nós a partir do paradigma eurocêntrico, branco e heterossexual que estruturam a forma como as mulheres negras são percebidas e situadas na sociedade brasileira: imagens de controle, marginalização, hiperssexualização, desumanização, objetificação e subalternidade.
Para resgatar as ações das mulheres negras em vários momentos históricos, precisamos colocar as pretas no centro da análise. Somos mulheres diversas, com várias identidades, estamos no campo e na cidade.
Mulheres que são muitas e que são múltiplas, uma vez que são atravessadas por diferentes marcadores de classe, território, sexualidade, geração, entre outros. Mulheres que resistem, e resistindo fazem ecoar a voz das que foram, as que estão e as que virão.
As mulheres negras são constantemente subestimadas, isso quando vistas enquanto seres humanos. Somos lidas socialmente como sujeitas que não conseguem liderar o país, apesar de participarmos ativamente da construção do território brasileiro, mas essa é “a história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar, na luta é que a gente se encontra¹”. Nesta perspectiva declaramos “nossos passos vêm de longe e irão muito além”. Somos a base, e no lugar de subalternidade no qual fomos empurradas, criamos estratégias de sobrevivência, estamos em constante autodefinição, mas importa compreender que sempre fizemos resistência à hegemonia.
Quem habita as margens, consegue visualizar as dinâmicas e especificidades de quem está no centro, teoriza bell hoocks. As perversidades do racismo, capitalismo e sexismo chegam primeiros nas periferias e/ou nos corpos que nelas habitam, o que implica na existência de diferentes bandeiras de luta, visando o restabelecimento da democracia brasileira, do fortalecimento das organizações sociais que defendem uma sociedade livre das opressões.
Não é um debate recente, não encaixamos no projeto político do Estado, porque ele legitima o genocídio do nosso povo, e não só este, mas os povos indígenas, ciganos, entre outros. Entretanto, refletindo que “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”, enxergamos que temos capacidade de mobilizar toda a população, neste sentido, movimentar as estruturas é pensar outro mundo. Estamos apresentando à sociedade um projeto de nação que contemple as múltiplas faces da população brasileira, pois na nossa história, temos a coletividade como valor civilizatório e já estamos há muito tempo nas margens.
O 25 de julho é a data que reverencia o Dia Internacional das Mulheres Negras da América Latina e do Caribe e também, no Brasil, é o Dia de Teresa de Benguela. O marco remete à data internacional do I Encontro de Mulheres Afro-latina, Americana e Caribenha, ocorrido em Santo Domingo, na República Dominicana, em 1992.
Neste ano, temos como mote Julho das Pretas – Em Defesa das Vidas Negras, pelo Bem Viver. Estamos afirmando politicamente e visibilizando as forças das mulheres negras no continente. Sustentamos o bem-viver como base de um novo modelo civilizatório e a necessidade de repensar a noção de desenvolvimento. Fundamentado na busca pela equidade, justiça social, o bem-viver considera a natureza como bem comum, e não como mercadoria, respeita os saberes, os corpos, os modos de vidas tradicionais, as identidades e as diferenças.
Com oposição ao conceito de acumulação, o consumo não sustentável como sinônimo de felicidade, o bem-viver abarca o projeto antissistêmico, e é a possibilidade de vida plena, com dignidade e respeito aos direitos humanos.
“A sabedoria milenar que herdamos de nossas ancestrais se traduz na concepção do Bem Viver, que funda e constitui as novas concepções de gestão do coletivo e do individual; da natureza, política e da cultura, que estabelecem sentido e valor à nossa existência, calcados na utópica de viver e construir o mundo de todas(os) e para todas(os). Na condição de protagonistas oferecemos ao Estado e a Sociedade brasileira, nossas experiências como forma de construirmos coletivamente uma outra dinâmica de vida e ação política, que só é possível por meio da superação do racismo, do sexismo e de todas as formas de discriminação, responsáveis pela negação da humanidade de mulheres e homens negros”, registra a Carta da Marcha das Mulheres Negras². Em 2015, nós já antecipamos as respostas para a(s) crise(s) que se vive(m) na atualidade.
Sempre lutamos para afirmar e reafirmar nossa existência. Nas margens, construímos nossas redes de solidariedade, não estamos estagnadas, mas sim, construindo a força embalada pelos ventos de Oyá que vai transformar esse país.
Existimos porque resistimos, a liberdade é o nosso princípio e a luta é pela vida!
¹Samba enredo da Mangueira – 2019
²Carta da Marcha das Mulheres Negras. Disponível em: https://www.geledes.org.br/carta-das-mulheres-negras-2015/. Acesso em 15 jul.2020
Originalmente publicao no site: nossafala.com
Edição: Cida Alves