Por Henrique Medeiros
Desilusão, abatimento, indignação, impotência, dúvidas sobre o ser humano, desesperança, solidão... Quais desses sentimentos já não acometeram em algum momento quem não consegue fechar os olhos para o descalabro da realidade brasileira? Isolados em casa por força da pandemia, distantes de amigos e familiares por desejar protegê-los, enxergamos atônitos a morte de mais de cem mil pessoas no Brasil ser normalizada. Perplexos, perguntamos: como chegamos a esse ponto de indiferença? Como é possível tamanho absurdo?
O sentimento de absurdidade emerge exatamente diante dos grandes traumas coletivos, quando a fé na condição humana, em atribuir um sentido à vida, é abalada, e as convicções da razão parecem desmanchar-se no ar. E é a experiência do absurdo que vai fundar uma corrente literária extremamente heterogênea, onde se destacam figuras tão distintas como o russo Fiódor Dostoiévski, o tcheco Franz Kafka e o franco-argelino Albert Camus. Não por acaso, é a obra prima deste último, A Peste, um dos livros com os quais mais podemos nos identificar no atual contexto.
A peste que nos assola é, sobretudo, a do vírus do ódio e da indiferença aos pobres. O flagelo que nos açoita é a morte como projeto político, o caos e o obscurantismo visando restaurar um regime político de terror.
E nem é preciso ser crítico literário nem médico para se encantar com as páginas de Camus. Aliás, se qualquer profissional da saúde se reconheceria imediatamente nelas, seria muito medíocre reduzir a potência de sua estética do absurdo à verossimilhança de suas extraordinárias descrições de uma (nem tão) ficcional epidemia de peste bubônica na cidade de Orã, na Argélia dos anos 1940. Que brasileiro não contaminado pelo desprezo à vida não se veria num trecho como o que segue?
"Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. [...] Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria estúpido”. Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. [...] Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres e jamais alguém será livre enquanto houver flagelos." (grifo nosso)
Se essa reflexão acerca do egoísmo não é menos que brilhante, o que dizer da agudeza com que Camus retrata a indiferença?
"Mas o que são 100 milhões de mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto. E visto que um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados ao longo da história esfumaçam-se na imaginação. O médico lembrava-se da peste de Constantinopla, que, segundo Procópio, tinha feito dez mil vítimas em um só dia. Dez mil mortos são cinco vezes o público de um grande cinema. Aí está o que se deveria fazer. Juntar as pessoas à saída de cinco cinemas para conduzi-las a uma praça da cidade e fazê-las morrer em montes para se compreender alguma coisa. Ao menos se poderiam colocar alguns rostos conhecidos nesse amontoado anônimo. Mas, naturalmente, isso é impossível de realizar e, depois, quem conhece dez mil rostos?"
Palavras cortantes, não? Poderíamos ainda citar aqui as passagens memoráveis em que descreve os esforços dos profissionais de saúde, o pesar de quem perdeu entes queridos e sequer pôde velar seus corpos ou estar presente ao funeral, a impotência frente à dor e ao sofrimento de uma criança sem conseguir salvá-la, entre tantas outras cenas infelizmente tão familiares a nós hoje em dia. Mas, certamente, nada é mais presente e profundo do que o sentimento de exílio em seu próprio país:
"Sim, era realmente o sentimento de exílio esse vazio que trazíamos constantemente em nós, essa emoção precisa, o desejo irracional de voltar atrás ou, pelo contrário, de acelerar a marcha do tempo, essas flechas ardentes da memória. [...] Chegava sempre um momento em que nos dávamos conta claramente de que os trens não chegavam. Sabíamos, então, que a nossa separação estava destinada a durar e que devíamos tentar entender-nos com o tempo. A partir de então, reintegrávamo-nos, afinal, à nossa condição de prisioneiros, estávamos reduzidos ao nosso passado e, ainda que alguém fosse tentado a viver no futuro, logo renunciava, ao experimentar as feridas que a imaginação finalmente inflige aos que nela confiam. [...] E assim, encalhados a meia distância entre esses abismos e cumes, mais flutuavam que viviam, abandonados a dias sem rumo e recordações estéreis, sombras errantes, incapazes de se fortalecerem a não ser aceitando enraizar-se na terra de sua própria dor. Experimentavam assim o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e de todos os exilados, ou seja, viver com uma memória que não serve para nada."
Fica evidente aqui a profunda influência do existencialismo filosófico e um flerte aparente com certa perspectiva niilista, um tom de pessimismo paralisante que, no entanto, é suplantado adiante. Porque a estética de Camus explora a absurdidade como fagulha para o despertar da dignidade humana e como convite à ação coletiva. Daí toda a beleza do otimismo de um personagem como Tarrou que, travando amizade com o desalentado Dr. Rieux, coloca-se na dianteira do combate à peste, organizando comissões e convocando os demais personagens (como o jornalista Rambert) a superarem seu horizonte individualista e se integrarem na força do coletivo, onde ganham uma nova perspectiva para a própria vida. Eis, também, a razão pela qual o autor dá ao heroísmo “o lugar secundário que lhe cabe, logo depois, e nunca antes, da exigência generosa da felicidade”, pois “se é verdade que os homens insistem em propor-se exemplos e modelos a que chamam heróis”, ele elege como tal herói um simples funcionário público, Grand, “esse herói insignificante e apagado que só tinha um pouco de bondade no coração e um ideal aparentemente ridículo.”
A Peste foi publicada em 1947, dois anos após o fim da II Guerra Mundial, e é profundamente marcada pelos horrores da ocupação nazista à França. Aliás, o livro tem como epígrafe uma frase bastante sugestiva de Daniel Defoe (escritor inglês, autor de Robinson Crusoé): “É tão valido representar um modo de aprisionamento por outro quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe”. É transparente, portanto, que o livro é uma belíssima alegoria. Não é à toa o paralelo entre os flagelos da doença e da guerra e o destaque ao sentimento de exílio e aprisionamento dentro do próprio país. Igualmente com o desfecho da peste: é impossível não associar a festa pelo fim da quarentena num certo dia 25 à comemoração popular pela libertação de Paris em 25 de agosto de 1944.
Por tudo isso (e certamente haveria muito mais a abordar) já é possível dizer que a leitura desse livro é fundamental para refletirmos sobre o nós e sobre nossa sociedade. Afinal não estamos vitimados apenas pela pandemia da covid-19: somos um país ocupado por hostes neofascistas oriundas das profundezas do ódio, da intolerância e do reacionarismo de nosso passado escravocrata. A peste que nos assola é, sobretudo, a do vírus do ódio e da indiferença aos pobres. O flagelo que nos açoita é a morte como projeto político, o caos e o obscurantismo visando restaurar um regime político de terror.
E tal como na obra, a saída é coletiva e se materializa no cotidiano, nas ações de solidariedade espontâneas ou organizadas a partir dos movimentos populares. A exemplo da campanha Periferia Viva, da formação de agentes populares de saúde, da doação de alimentos e produtos de limpeza, da defesa do SUS e da vida, dos encontros (ainda que virtuais) para organizar a resistência em todas as frentes. Não desanimemos: a vida vale a luta!
Referência: CAMUS, Albert. A Peste. 25 ed. Rio de Janeiro: Record, 2019. 288p.
Henrique Medeiros - Médico de Família e Comunidade, Professor da UFCG, Doutorando em Saúde Pública pelo IAM/Fiocruz
Edição: Cida Alves