Em meio à pandemia da Covid-19, uma parceria entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) tem garantido a entrega semanal de cerca de trezentos quilos de alimentos saudáveis à comunidades da periferia de João Pessoa. Muito além da simples distribuição de alimentos, o projeto “Da Terra à Mesa” – que conta também com apoio do Fundo Casa Socioambiental – tem servido ainda para estreitar laços, abrir perspectivas de trabalho comunitário e reforçar processos de organização popular entre trabalhadores do campo e da cidade.
Da elaboração até as primeiras ações, ainda em junho, o projeto busca aproximar iniciativas de organizações já ativas na Paraíba. Do lado da produção, os alimentos agroecológicos vem de cooperativas de assentamentos da reforma agrária nas regiões da Zona da Mata Sul e da Zona da Mata Norte do estado. Na outra ponta, os alimentos são entregues às cozinhas comunitárias organizadas pela rede Periferia Viva, que desde o início da pandemia tem trabalhado em âmbito nacional e regional junto às famílias de áreas em condições de vulnerabilidade social. Desta forma, o projeto gera renda para os produtores, estimula a produção de alimentos de base ecológica e sustentável e auxilia o combate à fome e ao coronavírus garantindo o acesso ao alimento saudável a moradoras e moradores da periferia urbana.
Solidariedade ativa e mobilização popular
De acordo com Gilmar Felipe, do setor de produção do MST-PB, o que diferencia o projeto “Da Terra à Mesa” de outras ações de distribuição de alimentos é a relação de solidariedade e de luta política que se estabelece através do alimento. Segundo ele: “O processo todo é considerado como um ato de solidariedade. É oferecer aquilo que a gente tem e não aquilo que nos sobra. Com esse ato nós colocamos em relação direta o indivíduo que está na cidade, na periferia, que não tem comida, com o sujeito que está no campo, o sujeito da reforma agrária, o sujeito sem terra, o camponês que produz alimento”.
Para o dirigente do MST a entrega de alimentos funciona também como processo de formação política na medida em que aponta para a reforma agrária como uma possibilidade concreta de produzir comida para a população pobre das cidades e para a luta por direitos como via de construção da cidadania. “A gente mostra que esse sujeito que está lá produzindo comida e vindo aqui, ele é pobre e vivia em condições de miséria parecidas com as de quem está na periferia. E se hoje ele tem dignidade, essa dignidade foi construída na luta pela reforma agrária. A ideia é apresentar para as pessoas que existe possibilidade de acabar com a fome, existe alternativa para o povo pobre, para o povo que não tem comida, que não tem onde morar”, concluiu.
A militante do MTD, Bárbara Zen, tem acompanhado de perto o processo de construção coletiva do projeto nas comunidades urbanas e destaca o protagonismo das mulheres desde a elaboração de estratégias até a execução das ações. Segundo ela, a decisão de criar cozinhas comunitárias e preparar refeições coletivas ao invés de apenas distribuir o alimento entre os moradores foi discutida em conjunto pelas mulheres organizadas. “Elas recebem o alimento, mas elas constroem. Muitas delas já tinham o hábito de fazer sopão e algumas coisas nesse sentido. Então no momento que elas decidem por isso, elas decidem por um passo organizativo. Um passo de não só ficar dependendo de receber alimentação, mas de poder dialogar sobre a questão da alimentação saudável, de saber que existe todo um circuito para que aquele alimento chegue até ali.”
Ainda sobre a mobilização e organização das mulheres nas periferias, Bárbara explica que novas ideias e propostas de trabalho tem surgido entre os grupos conforme o projeto avança. “A questão alimentar é hoje, talvez, um dos principais elementos que podem disparar o trabalho de base. Nossa ideia é que esses grupos se transformem em grupos de produção comunitária para alimentar as comunidades e para se transformar em grupos de produção da economia feminista. Daqui a pouco a gente pode ter um grupo de mulheres trabalhando com alimentação. Fazendo parte da alimentação da comunidade, mas também trabalhando e gerando renda para dentro do próprio grupo. É a questão de conseguir reapropriar o trabalho, de conseguir manter a organização popular alimentando o próprio povo”.
Protagonismo feminino e desafios
Maria Simone da Silva e Janaína do Aratu são duas das várias mulheres que tem assumido não só as cozinhas comunitárias como também a liderança política em suas comunidades. Segundo Simone, moradora do Bairro dos Novais, os produtos recebidos toda semana são servidos em uma janta que alimenta cerca de oitenta famílias da região. Um trabalho que seria impossível não fosse a participação do grupo de mães de Novais, um coletivo que conta com cento e cinquenta mulheres da comunidade. “A gente prepara o inhame, a batata, a macaxeira, faz doce com as frutas e distribui para as pessoas. Cada dia chega mais gente, até pessoas que vivem nas comunidades ao redor. Mas a gente não descarta ninguém, porque quem vem é porque realmente necessita”.
Na comunidade do Aratu, em Mangabeira, o processo é parecido. Moradora da região há treze anos, Janaína do Aratu, como faz questão de ser chamada, conta com o apoio do Clube de Mães do Aratu. De acordo com a líder comunitária o clube criado em 2017 reúne hoje cerca de 170 mulheres e é o principal responsável pelo recebimento e distribuição dos alimentos. “A comida chega, a gente reúne as mulheres da comunidade e faz uma janta. Cada morador traz sua vasilha e leva pra casa para não aglomerar. É um processo ainda, estamos aprendendo. Mas já estamos com a ideia de aproveitar essa experiência para nos profissionalizarmos e começarmos a fazer renda para o nosso sustento e também para melhorar nossa organização”, detalhou.
Apesar do impacto positivo gerado pela entrega dos alimentos, as duas líderes concordam que ainda há muito por se fazer. Além da falta de equipamentos adequados como fogão, geladeira e panelas, existem as dificuldades impostas pelas ausência de condições básicas de moradia como água, energia e saneamento básico. “As dificuldades que a gente encontra são em grande parte pela ausência do poder público. Nós temos nos esforçado e feito o possível, mas se o poder público não vier com a gente, tudo cai por terra”, desabafou Janaína.
Edição: Cida Alves