O Estado legitima a violência em nome de uma suposta guerra contra as “drogas”
Por Danilo Santos da Silva*
Nos últimos dois séculos, a população negra tem se organizado para caracterizar, sistematizar e denunciar a violação dos seus direitos humanos no Brasil. Tem denunciado o papel do Estado na construção e execução de uma política que determina quem morre e quem vive; como morre e como vive; onde morre e onde vive; tendo o racismo como regulador para administrar a produção da morte e a gestão das condições mortíferas (FRANCO, 2019). Ao mesmo tempo ele mata ou deixa morrer, concordando com o resultado mediante ação e omissão no decorrer do processo histórico na sociedade brasileira.
Essa política tem proporcionado um fenômeno de violência contínua que se desenvolve primeiro através da morte social e, depois, por meio da morte física. A morte social acontece de maneira prolongada, através da geração dessas condições mortíferas, possibilitadas principalmente por intermédio do racismo institucional, impedindo ou tornando mais difícil o acesso às condições básicas que a população negra precisa para sobreviver.
A morte social tem início com a criação de leis que tornava difícil ou impossível o acesso da população negra aos bens, serviços e espaços públicos, como foi o caso da Constituição do Império (1824), a qual impedia a população negra de frequentar as escolas; a Lei de Terras (1850), que proibia a população negra de comprar e ter a posse de terra no Brasil; e a Lei da Vadiagem (1941), a qual permitia a prisão de quem fosse encontrado nas ruas sem emprego.
Esse conjunto de leis nos ajuda a perceber a morte social como parte de um projeto pensado e executado. O Estado que negou o acesso à educação e à terra à população negra é o mesmo que a penalizou porque não tinha moradia, emprego e sustento digno. Diante de tal situação, a população negra passou a fazer parte dos territórios de grandes vulnerabilidades sociais, onde o Estado, além de não garantir as condições mínimas de sobrevivência, até hoje tem se feito mais presente através da força repressiva da polícia.
A morte social tem início com a criação dessas leis e tem tido continuidade a partir da ineficácia das políticas públicas universais, que não chegam de forma efetiva em territórios de maioria negra, e através da falta de políticas públicas especificas, gerando o aumenta em grande proporção dos índices de vulnerabilidade social da população negra quando comparada com a população branca.
Apesar da população negra ser maioria (53,6%), enfrenta grandes desigualdades, a começar pelo quesito renda: de forma geral, há uma diferença salarial de 45% entre trabalhadores brancos(as) e negros(as). Quando se trata da mulher negra, esse percentual é ainda maior, chegando a 70% no mesmo cargo e na mesma função (PNAD, 2019).
Quando se trata de juventude (entre 15 e 29 anos) que não estudava nem trabalhavam, 62,9% são negros(as). A maternidade na adolescência é um dos fatores que levam as meninas a essa condição. Do total de jovens que não estudavam e não trabalhavam, 59,7% tinham pelo menos um/a filho/a, sendo que, destas, 69% eram negras (IBGE, 2014).
Esses dados ilustram bem os resultados proporcionados pelas condições mortíferas que vem matando socialmente, de forma contínua e progressiva, a população negra no decorrer do processo histórico brasileiro. Se por um lado, a morte social acontece de forma progressiva, através das condições mortíferas produzidas pelo Estado, por outro, a morte física acontece como o último estágio da execução.
De maneira direta, utilizando uso ilegítimo da força através do argumento da “segurança pública”, o Estado legitima a violência em nome de uma suposta guerra contra as “drogas”, o “tráfico”, proporcionando uma matança nos territórios de maior vulnerabilidade social e, por conseguinte, de maioria negra.
Tal atitude institucionaliza o senso comum racista (população negra + periferia = envolvimento com o tráfico), normatiza e determina o estereótipo do marginal, contribuindo para banalizar a violência contra a população negra, principalmente nas comunidades e favelas do Brasil.
Legitima a máxima de que todo homicídio cometido nesses territórios está envolvido com o narcotráfico e, assim sendo, é automaticamente justificado e não precisa ser solucionado. Por mais que essa regra não seja escrita, ela orienta a política de Estado. É o que se chama de conjunto das regras não escritas, que está no nosso imaginário (BORGES, 2019).
A normatização desse estereótipo faz com que não se busque as devidas providências para os altos índices de homicídios da juventude negra: cerca de 77% dos jovens assassinados no Brasil são negros e negras (Mapa da Violência, 2014). A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil: isso equivale à queda de mais de 150 jatos, cheios de jovens negros(as), todos os anos (CPI do Assassinato de Jovens, 2016). Para se ter uma ideia, entre jovens, a taxa de homicídios de brancos é de 34 a cada 100 mil habitantes. O número é quase três vezes menor que o dos jovens negros: são 98,5 assassinatos por 100 mil (DATASUS, 2020).
Segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, naquele estado, das 1.814 pessoas mortas em ações da polícia no ano de 2018, 1.423 foram pessoas negras. Entre elas, 43% tinham entre 14 e 30 anos de idade (ISP-RJ, 2019).
O Índice de Vulnerabilidade Juvenil de 2013 mostrou que a Paraíba apresentou maior probabilidade de morte violenta para um jovem negro(a): 13 vezes maior do que para um jovem branco(a). Na escala de vulnerabilidade, ficou na segunda colocação entre os Estado da Federação. A violência e desigualdade racial que vitima os jovens paraibanos(as), foram consideradas de "alto risco" (IVJ, 2013). Em 2017, houve uma queda, mas ainda continuou alto: a chance de um jovem negro(a) na Paraíba ser morto(a) era cerca de 8,9 vezes maior do que a de um jovem branco(a) (IVJ, 2017).
O Estado brasileiro tem atuado de forma direta ou indireta para o desenvolvimento da morte social da população negra, deixando-a nem “morta demais” nem “viva demais” para que a bala seja o último estágio do projeto. Este se materializa nos dias atuais através da sua ação ou omissão sob o argumento de combate ao tráfico e na falta de políticas públicas específicas nos territórios de maioria negra, proporcionando o genocídio da população negra, principalmente da juventude negra.
Para conhecer mais a respeito, sugerimos os seguintes textos:
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte, São Paulo, 2019.
Referências Bibliográficas:
BORGES, Rosane. O que é necropolítica? E como se aplica à segurança pública no Brasil? (Entrevista). PONTE, 2019. (https://ponte.org/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-no-brasil/).
CPI do Assassinato de Jovens; relatório final, Senado Federal: Brasília-DF, 2016.
DATASUS. Departamento de informática do Sistema Único de Saúde do Brasil, 2020.
FRANCO, Fabio Luiz Nobrega. Necropolítica: entenda o que é a política da morte (Entrevista), TVT, Bom Para Todos, 2019. (https://www.tvt.org.br/necropolitica-entenda-a-politica-da-morte-bom-para-todos-12-12-19-%e2%98%80/).
Índice de vulnerabilidade juvenil à violência e desigualdade racial 2014, Secretaria-Geral da Presidência da República, Secretaria Nacional de Juventude, Ministério da Justiça e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. – Brasília: Presidência da República, 2015.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2014.
IVJ 2017: desigualdade racial, municípios com mais de 100 mil habitantes, São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017.
Levantamento de mortes por intervenção policial no RJ. Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, 2019.
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua-PNAD, IBGE, 2019.
PIZA, Suze. Pensamento Descolonial: Achille Mbembe e a Necropolítica (Entrevista), Casa do saber: quem somos nós, 2020 (https://www.youtube.com/watch?v=Cv3pRBnTNiU).
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2014: os jovens do Brasil, Flacso Brasil, 2014.
O país que mata seus Pelés – Portal Geledés, LATUFF 2019.
Superministro Moro, facilitando o genocídio da juventude negra. Por Carlos Latuff, 2019: brasildefato.com.br
_*Danilo Santos da Silva é Pesquisador colaborador do NEABI-CCHLA/UFPB; Assessor de Projetos do Fundo Brasil de Direitos Humanos e Ativista do Movimento Negro_
Edição: Henrique Medeiros e Cida Alves