No final do mês de agosto, o país bateu o recorde de 10 mil casos registrados em 24 horas
Por Ellen Maria Oliveira Chaves; Marcelly Thaís Marques Ribeiro e Paola Aparecida Azevedo de Souza*
A Argentina foi um dos primeiros países da América Latina a decretar o isolamento obrigatório como uma medida preventiva à COVID-19, tornando-se o país com a quarentena mais extensa na região. Porém, mesmo com todo o esforço governamental e o apoio da população nos primeiros meses de isolamento, o país ocupa hoje a 10ª posição no ranking de países com o maior número de infectados do mundo. Como isso aconteceu?
Desde o início do ano, a insegurança alimentar no território argentino já era um problema crescente. Cerca de 90% das casas argentinas recebem algum tipo de programa de transferência de renda do governo, visto que há três anos o país passa por uma grande recessão econômica que colocou 35% da população na linha da pobreza. Essa situação se agrava principalmente nas regiões de fronteira com a Bolívia, onde se encontram as províncias com maior vulnerabilidade social. Nesse contexto, o governo argentino impulsionou uma série de políticas de seguridade social para evitar os impactos econômicos negativos da pandemia, como a ampliação da distribuição do cartão alimentar AUH (Assignação Universal por Filho). O governo também lançou programas de apoio para a produção de equipamentos que possam contribuir para conter e tratar a COVID-19.
A taxa de ocupação dos leitos de UTI no início de agosto era menor do que 70%; entretanto, nas últimas semanas, houve um aumento no número de infecções. No final do mês de agosto, por exemplo, o país bateu o recorde de 10 mil casos registrados em 24 horas. A crescente tensão entre o governo e a população argentina ocasionou o aumento exponencial dos casos mesmo com as medidas rigorosas de prevenção. O desrespeito das regras de distanciamento tornou cada vez mais comum o registro de aglomerações por todo território argentino. Segundo a secretaria de saúde do país, esses encontros, considerados clandestinos pelo governo, são os grandes responsáveis pelo aumento no número de casos.
Além disso, no começo de agosto, milhares de argentinos foram para as ruas protestar contra a extensão da quarentena e contra a reforma no judiciário, vista por alguns como uma manobra do governo para impedir a condenação da ex-presidenta Cristina Kirchner por corrupção. Conforme registros e relatos de quem participou, poucos manifestantes faziam uso de máscaras ou mantinham o distanciamento social.
Esses fatores resultaram em um cenário atual com cerca de 664 mil casos e 14 mil mortes, tornando a Argentina o 5° país com mais casos da América Latina. Entretanto, apesar do número de contaminados, o país possui uma baixa taxa de mortalidade em comparação com outros países. O Peru, por exemplo, possui dois terços da população argentina, mas registra o dobro de óbitos. Segundo a Sociedade Argentina de Infectologia (SADI), algumas medidas foram essenciais para o sucesso inicial da contenção da curva de contágio da doença, como o decreto para o isolamento bem no começo do surto e a grande adesão da população à quarentena e ao uso de máscaras. Desse modo, as autoridades argentinas puderam ter tempo para fortalecer o sistema de saúde.
É importante frisar que a Argentina enfrenta uma grave recessão econômica. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura - FAO, entre 2004 a 2017-2019 o percentual da população em insegurança alimentar grave aumentou de 5,8% para 12,9% e a insegurança alimentar moderada subiu de 19,2% a 35,8%. Com um déficit orçamentário previsto para quase 10% do PIB e um encolhimento de 19% da economia no segundo trimestre, de acordo com dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos, as expectativas de crescimento econômico não são muito promissoras. Entre os pequenos e médios empresários, os impactos das medidas de isolamento foram devastadores, e de março a agosto cerca de 40 mil empresas declararam falência.
Outro fator preocupante foi o crescimento do número de trabalhadores informais. Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), 47,2% da população argentina está sobrevivendo por meio de trabalhos informais e, em toda América Latina, mais de 50% da população adulta ativa trabalha na informalidade.
Uma medida importante, que relaciona segurança alimentar e economia, foi a desapropriação da empresa agroexportadora Vicentini, responsável por 13% de todas as exportações de grãos do país em 2019. A empresa, que declarou falência no final de 2019, tem uma dívida de cerca de US$ 1,5 bilhões; destes, US$ 300 milhões com o Banco de La Nación. Uma das justificativas dadas pelo presidente argentino Alberto Fernández é que, como principal credor da empresa, o governo iria se apropriar do grupo Vicentini visando à realocação no mercado desta que é a quarta maior exportadora de soja do país.
Essa apropriação também significaria um avanço no plano de desconcentração urbana do governo, que pretende criar incentivos para que trabalhadores da zona urbana migrem para o campo. Além disso, com a estatização da empresa, o governo argentino teria maior capacidade para controlar o preço dos cereais no país, aumentando suas possibilidades de controle da inflação. Todavia, devido à pressão de empresários, investidores e da oposição, o governo decidiu suspender o projeto de estatização do grupo Vicentini e optar por seguir uma parceria público-privada.
Os fatos apresentados revelam que a decisão de decretar quarentena nos primeiros meses da pandemia foi crucial para o desempenho do governo no controle no número de mortes pela COVID-19. Contudo, o extenso período de isolamento, a recessão econômica e os escândalos de corrupção contribuíram para o desagrado dos argentinos, culminando em uma série de protestos contra o governo no final do mês de agosto e, consequentemente, num aumento no número de casos positivos. Paralelamente, o crescimento da insegurança alimentar é uma realidade em toda a América Latina. Os avanços progressistas conquistados neste século foram apagados. O futuro é preocupante e as condições impostas pela pandemia põem em xeque a capacidade da Argentina, um país que historicamente não sofreu com a fome, alcançar suas metas referentes à segurança alimentar e nutricional até 2030.
-Acesse o blog www.fomeri.org do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais para acompanhar as principais notícias e relatórios de organizações internacionais sobre como a pandemia afeta a segurança alimentar e nutricional pelo mundo
*O Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB é formado por: Prof. Thiago Lima; Ellen Maria Oliveira Chaves; Marcelly Thaís Marques Ribeiro; Paola Aparecida Azevedo de Souza
Edição: Henrique Medeiros e Cida Alves