Paraíba

Coluna

Crescer sem violência: o que estamos fazendo por esse futuro, agora?

Imagem de perfil do Colunistaesd
Reprodução - Foto: Reprodução
Racismo e desigualdades sociais são estruturantes das reproduções históricas de violação de direitos

Rozana Monteiro*

Crescer sem violência é um direito garantido em nossa Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), o qual há 30 anos colocou  crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direitos considerando a infância e a adolescência como fases do desenvolvimento humano com necessidades peculiares, apontando o Estado, a família e toda a sociedade como responsáveis  por assegurar esses direitos com prioridade absoluta.

A política de atendimento às crianças e adolescentes vem apontar os modos pelos quais deve-se concretizar  o que é preconizado no ECA e deve ser aplicada entendendo as infâncias e adolescências em suas multiplicidades e singularidades,  atravessadas por uma série de fatores territoriais, históricos, político-culturais, socioeconômicos, dentre outros aspectos que compõem a dimensão humana. 

Metade das crianças do mundo, ou aproximadamente um bilhão de crianças a cada ano, é afetada por violência física, sexual ou psicológica

No entanto, há ainda muito que se caminhar para a efetivação  desses direitos, ainda mais no contexto político atual, onde tem-se que lutar para não perder os direitos sociais já conquistados e constantemente atacados por um presidente que nunca escondeu seu desprezo pelo ECA, defende veementemente a redução da maioridade penal e a liberação de armas de fogo (símbolo de sua campanha),  as mesmas que soltam aquelas “balas perdidas” que sempre encontram os mesmos corpos negros e pobres nas periferias do Brasil. São estas crianças, seus pais, irmãos e amigos que estão na mira do revólver ou do encarceramento. 

As crianças são o presente do país. São o retrato de como o Estado cuida de sua população.

Relatórios e estudos de organizações e  entidades, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a Fundação Abrinq,  o IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, apontam para dados gritantes de violação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Segundo o material publicado pela Childhood o Guia de Referência: Construindo uma Cultura de Prevenção à Violência Sexual, as tipificações de violência contra crianças e adolescentes podem ser divididas em dois grandes grupos: as que se constituem através da  violação de direitos devido a não inclusão nas políticas públicas e as  que “são cometidas por um agente agressor, em estágio de desenvolvimento físico, psíquico e social mais adiantado” (P.31). No meio desses dois grandes grupos, meninos e meninas do Brasil são sufocados em sua voz, dignidade e integridade.

Num cenário mundial onde há uma estimativa em que quase 690 milhões de pessoas passaram fome em 2019, segundo dados da Unicef e, com 45,4% de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos em condição domiciliar de baixa renda segundo Grandes Regiões no Brasil no mesmo ano, conforme relatório da Fundação Abrinq, agora, com o Covid-19 vê-se as diversas vulnerabilidades sendo agravadas e, nesse processo, as crianças e adolescentes mais atingidas tem cor e classe.

Segundo o Atlas da Violência 2020/IPEA, adolescentes e jovens negros das periferias  compoẽm maiores porcentagens enquanto vítimas de homicídios, bem como são as crianças negras e pobres as maiores vítimas de Trabalho Infantil, de acordo com dados da Unicef. Quando se trata de exploração sexual, novamente as questões de renda e raça saltam aos olhos, apontando o racismo e as desigualdades sociais como estruturantes também das reproduções históricas de violação de direitos humanos de crianças e adolescentes.

Comumente se diz que as crianças são o futuro do país. Que futuro vislumbramos quando nos deparamos com essa realidade?  E sabendo ainda que esses casos são sub notificados por diversos fatores, sendo um deles a naturalização das violências contra crianças e adolescentes, as quais se estruturam através de pilares historicamente construídos em relações de poder desiguais de uma sociedade adultocêntrica, patriarcal, machista, classista e racista, só para início de conversa. Estes fatores contribuem , cada um a seu modo e reforçando-se entre si, para diversas formas de reprodução das violências e invisibilização das mesmas.

O adultocentrismo, a partir do qual a fala da criança acaba sendo descredibilizada, vista como não confiável, mentirosa e inventiva, merece destaque. Taí o caso do menino Bernardo que teve sua vida ceifada depois de anos sofrendo violência doméstica e teve sua fala descredibilizada até pela rede de atendimento, na qual a própria criança buscou socorro mas não foi protegida a tempo. Não houve celeridade em primar pela sua proteção imediata e a criança acabou sendo assassinada pelo pai e a madrasta, como havia alertado. A lei Menino Bernardo (Lei 13.010/2014) vem para nos apontar o quanto infelizmente casos como esse  são uma cruel realidade, inclusive legitimados numa cultura que se pauta ainda em muitas vezes, na violência como forma de “educar”.

Há uma permissividade histórica no sentido de se violar o corpo da criança, ou de tratá-la tal qual objeto sob a manipulação do seu dono, de não percebê-la enquanto sujeitos de direitos  que devem  ter sua integridade física e psicológica preservadas, enquanto seres que precisam expressar-se e dizer a sua palavra na maneira que são capazes. Palmadas, beliscões, dentre outras manifestações de agressões que chegam até ao espancamento,  onde o uso da força física é utilizada causando sofrimento, ferindo a integridade e saúde corporal da criança configuram-se enquanto violência física e é crime!  O discurso que busca justificar qualquer tipo de violência física é o mesmo a legitimar que crianças sejam espancadas até a morte por seus próprios cuidadores/genitores/responsáveis.

Falta de limite é falta da devida atenção, de estar junto, construir vínculos, e dizer com toda a firmeza que a criança precisa quantos “nãos” forem necessários.

Xingamentos, rejeições, ameaças, dentre outras manifestações de humilhação, desqualificação e pautadas no medo são formas de violência psicológica. Esta não deixa marcas físicas aparentes, mas geralmente anda acompanhada de outros tipos de violência e tem consequências que podem afetar todo o desenvolvimento da vítima. Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria em média 233 agressões (Física, psicológica e tortura) contra crianças e adolescentes são notificadas diariamente no  Brasil gerando um número alto também de hospitalizações e óbitos. 

O machismo é outro fator que contribui com a perpetuação e naturalização das violências  principalmente quando se trata de violência sexual. Em diversas referencias, a exemplo de indicativos da Childhood, os homens aparecem como principais violadores e as meninas como principais vítimas.  A partir da sustentação do pensamento machista, naturaliza-se essa violência culpabilizando as meninas como provocadoras das situações, invertendo-se os papéis de vítima e agressor.

Quando se trata do abuso sexual, sentimentos de culpa e medo envolvem a vítima num pacto silencioso de perpetuação dos episódios de violência e é cometido geralmente por um adulto de confiança da família, por uma pai “exemplar” de uma família “estruturada” em que o cenário de violências fica nas coxias  e no palco exibem-se cenas de comercial de margarina.

Importante ressaltar que esses termos muito utilizados de “família estruturada” ou “desestruturada” de nada servem para diagnosticar violências, apenas reforçam valores morais de família dentro das normativas socialmente aceitas como heterossexuais, brancas, de classes sociais mais elevadas, pelas quais muitas vezes perpassam uma série de violências camufladas em valores morais.

Por fim, nesses tempos de pandemia e distanciamento social, longe das  escolas e outros  espaços de convivência comunitária, houve também um aumento nos casos das violências auto provocadas (suicídio e automutilação) apontando para a necessidade, cada vez mais urgente, de se cuidar das infâncias se adolescências, em todos os seus aspectos. Crianças e adolescentes  estão sofrendo e estão dizendo, usando palavras ou não.
Há um provérbio africano citado por muitos que diz: “é preciso uma tribo inteira para educar uma criança”.

E é. Para educar, para cuidar e proteger. Mas no nosso cotidiano impera o ditado popular “quem pariu Mateus que balance”. Então Mateus e quem o pariu são muitas vezes abandonados à própria sorte. Quando entendermos que é preciso fortalecer toda rede de apoio ao redor de Mateus e de quem cuida dele, numa perspectiva de cuidados mútuos, amparados pelo Estado, com direitos garantidos e efetivados, Mateus será cuidado e protegido e aprenderá a ser um ser humano capaz de cuidar e proteger também.

Enquanto esse sonho não vira realidade, vamos construindo, tijolo por tijolo. Não há outra maneira. É preciso dar visibilidade. Entender. Denunciar. Fortalecer a rede de atendimento.  A informação é aliada da prevenção. É preciso defender a educação sexual nas escolas, sim! Escrever uma história de respeito à infância e à adolescência  no nosso país, onde não seja preciso justificar que a criança precisa brincar, sonhar, imaginar, que pode até “traquinar”, “trelar” sem ser punida cruelmente ou castigada por isso.  

Falta de limite não é falta de agressão. Falta de limite é falta da devida atenção, de estar junto, construir vínculos, e dizer com toda a firmeza que a criança precisa quantos “nãos” forem necessários. Mas não é limitar afetos, colos, abraços, um olhar de cumplicidade.

Não é limitar esforços, para enquanto adultos e adultas nos reinventarmos  e desconstruirmos em nossas práticas cotidianas as bases dessa cultura perversa que violenta e forma violadores e seres anestesiados às violências assistidas. Desconstruir a cultura de violência passa pelo fortalecimento da luta anti-racista, feminista, das relações não adultocentradas, aprendendo outras maneiras de nos educarmos mutuamente, como ensinou Paulo Freire, para um mundo pautado na ética, justiça e paz.

As crianças são o presente do país. São o retrato de como o Estado cuida de sua população. São as lentes que nos mostram como estão sendo estabelecidos os  modos de vida na sociedade.  São também reflexos da família em suas manifestações de afeto e visão de mundo.

Unicef aponta que “Metade das crianças do mundo, ou aproximadamente um bilhão de crianças a cada ano, é afetada por violência física, sexual ou psicológica, sofrendo ferimentos, incapacidades e morte porque os países não seguiram estratégias estabelecidas para protegê-las”. Um bilhão de crianças por ano sendo violentadas! No momento em que olhamos para esse retrato, que é também espelho, o fato de sentirmos indignação ou indiferença, vergonha ou desprezo, diz muito mais de nós e de como será futuro.

*Rozana Monteiro é mãe de Raoni, facilitadora didata de Biodanza, psicóloga com formação na área social e comunitária, atuando no terceiro setor com foco na educação em direitos humanos de crianças e adolescentes. 

 

Edição: Cida Alves