Paraíba

Coluna

Trajetória de Anna Ignácia, uma mulher escravizada no sertão da Paraíba (1822-1866)

Mulher crioula, filha de africanas/os e nascida no Brasil - Imagem de Johann Moritz Rugendas – Década de 1830 - Imagem Ilustrativa: Fragmento/Recorte
Os horrores da escravidão e a ação ativa de uma mulher que lutou pela sua liberdade e de seus filhos

Anicleide de Sousa*

Os estudos sobre escravidão no Brasil têm passado por grandes avanços nos últimas décadas. As novas perspectivas nos possibilita conhecer trajetórias de indivíduos escravizados, suas ações, seus anseios, projetos de vida e disputas por liberdade. Apesar disso, observamos que ainda falta muito a ser conhecido sobre a história da população negra no Brasil, a exemplo das suas vivências nas regiões sertanejas brasileiras. Especialmente quando falamos de escravidão, que durante anos, esta foi apresentada como algo que não teve grande presença nos sertões, de uma forma geral. No entanto, com olhar atento na documentação histórica, podemos identificar esse grupo social, que compôs o cenário histórico sertanejo desde os primeiros anos de reocupação desses territórios, juntamente com outros grupos populacionais, como os povos indígenas.


Fonte: Atlas do Império do Brasil, Cândido Mendes, 1868/Biblioteca Nacional/RJ / Imagem Reprodução


O interesse em pesquisar sobre a população escravizada no Sertão da Paraíba surge inicialmente das inquietações e lacunas ainda presentes nos estudos históricos sobre a temática, que durante muito tempo deu pouca relevância à existência e à importância da presença de cativos na formação social e econômica no Sertão paraibano, sendo uma das exceções “O declínio da escravidão na Paraíba, 1850-1888”, publicada no ano de 1979, da historiadora Diana Soares Galliza. A autora demonstra a presença de escravos na economia sertaneja e despertou maior interesse na compreensão por essa história e sobre a qual ampliamos com estudo sobre escravidão em Catolé do Rocha (Sousa, 2018). 

A partir disso teve início minha busca pelas fontes que pudessem nos contar um pouco dessas histórias. Foi então que encontrei documentos sobre Anna Ignácia, mulher negra escravizada, que lutou com todas suas forças pela sua liberdade e dos seus filhos, em plena vigência do sistema escravista no sertão paraibano na segunda metade do século XIX, na Vila de Catolé do Rocha- atual Catolé do Rocha. 

Qual documentação nos permitiu conhecer a história de Anna Ignácia?

A documentação que traz parte da história de Anna Ignácia não foi encontrada no sertão. As fontes em questão, foram localizadas no Arquivo Privado Maurílio de Almeida, em João Pessoa, durante o processo e organização e digitalização de documentos realizado através de um Projeto de Extensão desenvolvida por docentes do Departamento de História e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro-brasileiros e Indígenas/NEABI, ambos na Universidade Federal da Paraíba/UFPB e pesquisa de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em História/PPGH-UFPB (2016-2018) . 

O quadro um mostra parte dos horrores da escravidão, mas também a ação ativa de uma mulher que viveu no interior do Brasil durante o século XIX

Durante as pesquisa, identificamos várias correspondências entre o Governo da Província do Ceará e o Governo da Província da Paraíba, do ano de 1866, que continha alguns anexos, como ofícios enviados anteriormente, depoimentos de testemunhas que 
Nos mostraram a disputas do proprietário e de Anna Ignácia que procurava provar que era livre. Sendo quem na década de 1850, portanto, dez anos antes, um representante de de Anna Ignácia apresentou denúncia de que ela estava em cativeiro ilegal.

 


Acervo: Arquivo Privado Maurílio de Almeida / Imagem Reprodução

A busca para ser livre no Sertão paraibano

No ofício - correspondência entre o Governo Provincial da Paraíba e do Ceará, 1866 - o Governador da Paraíba, em resposta ao administrador do Ceará, inicia informando que recebeu a requisição para que fosse designado um curador (representante legal) para Anna e seus filhos.  E que esse processo deveria ser remetido ao Termo da Vila de Catolé do Rocha, pois era onde “se agitava a causa da liberdade”, lugar de origem da “parda” Anna e seus filhos, os quais se diziam supostamente livres.

Então por que essa troca de correspondência estava o Governo do Ceará se a Vila de Catolé do Rocha fica na Província da Paraíba? Anna Ignácia, usando de sua rede de sociabilidade fugiu da Vila de Catolé do Rocha para a Vila de Queixeramobim/CE. Lá chegando, denunciou junto às autoridades, que estva sendo mantida em cativeiro ilegal. A partir daí, as autoridades locais entraram em contanto com o Governo da Parahyba com a finalidade de resolver a questão da liberdade de Anna Ignácia. 

Mas antes, em 23 de dezembro de 1858, Anna havia procurado proteção das autoridades na Vila de Queixeramobim/CE, afirmando ser livre, e que teria sido vendida por seu padrinho, de nome José Ferreira, a uma senhora chamada Donna Ignácia e posteriormente vendida para o pai do seu atual proprietário. Garantiu ainda que, existiam pessoas na Vila de Independência - atual Guarabira/PB - que poderiam atestar sua liberdade, além de afirmar que era filha de uma “tal de Maria” moradora em Limoeiro, na Província de Pernambuco. Como Anna, depois de 30 anos de cativeiro, soube de sua origem, de sua história, com tanta certeza de que haveria inclusive testemunhas de sua liberdade? Infelizmente não temos essa resposta, no entanto, conseguimos saber um pouco mais sobre sua história por meio das pessoas que deram testemunhos sobre ela. Tais indícios possibilitaram traçar parte da trajetória de vida dela. 

Duas testemunhas foram indicadas por Anna, para que confirmassem que sua versão de estar sob cativeiro ilícito era verídica. O primeiro André José Pereira, pardo, viúvo, de 55 anos de idade, agricultor, morador na Vila de Independência/PB, e a segunda testemunha, Manoel Alves Ribeiro, de 80 anos de idade, viúvo, agricultor, também morador na Vila de Independência/PB.

O contexto do século XIX foi um período de encarecimento da mão-de-obra de escravizadas/os, o que levou mais terror às crianças, mulheres e homens negros pois corriam o risco de serem escravizadas/os ou reescravizadas/os.

Ambos afirmavam que o “tal” José Ferreira teria passado pela Vila de Independência entre os anos de 1824-1825. Este homem era casado com uma mulher chamada Maria. Estes andavam acompanhados de uma “mulatinha” de nome Anna, a qual tratavam por afilhada. Uma das testemunhas aponta que José Ferreira viria da região de Limoeiro/PE, junto com a esposa e a “mulatinha”. Um deles relembra que algum tempo depois dessa passagem de José Ferreira na região, ouviu dizer que o mesmo teria vendido/trocado a menina com uma “tal” de Dona Ignácia, chegando a questionar que “como ele a vendera se a menina era conhecida como forra, não era cativa” e ainda afilhada do casal?

As testemunhas revelam que José Ferreira teria feito uma troca com Dona Ignácia pelo trajeto, e essa senhora ao chegar no sertão a vendeu ao Major João Batista. Ainda destacam que José Ferreira não teria condições de possuir escravos, e supunham que ele “teria agido de má fé vendendo a criança como cativa em momento oportuno”. Assim sendo, era necessário investigar se José Ferreira era um homem que teria condições de possuir escravos e se a versão da criança ser sua afilhada, teria sido apenas para encobrir seu crime de rapto.

Percebemos assim que, Anna era uma criança forra e parda, tendo sido libertada ainda criança, possivelmente no ato do batismo.  No entanto, pode ter sido vítima de um rapto por José Ferreira, tendo sido tirada de sua mãe ou seus familiares, e vendida como escravizada. O que ocorria bastante no século XIX, pessoas negras ou pardas, livres ou libertas, tinham que provar o tempo inteiro serem livres ou libertas, estavam sempre sob suspeição. Além disso, o contexto do século XIX foi um período de encarecimento da mão-de-obra de escravizadas/os, o que levou mais terror às crianças, mulheres e homens negros pois corriam o risco de serem escravizadas/os ou reescravizadas/os, apesar de existir lei que criminalizava o rapto e roubo de crianças negras livres (Lima, 2013). Conjecturamos, assim, que Anna Ignácia foi raptada e vendida várias vezes.

Era a força do sistema escravista se sobressaindo, demonstrada também na tentativa do suposto proprietário de Anna Ignácia, de recuperar a posse herdada do seu pai. Para tanto ele apresenta documentos que lhe assegura tal direito de proprietário. Um desses documentos era o registro de compra e venda, no qual atestava que Anna era propriedade do Senhor Doutor Antônio Benício Saraiva Castello Branco, que recebeu como título de doação do seu pai, o Major João Baptista Coelho. 

Segundo o registro Donna Ignácia teria vendido a cativa pelo valor de 134 mil reis, afirmando que “a partir daquele momento a escrava era de posse do outro e não tinha interesse em desfazer o negócio”. O documento é de 02 de julho de 1830, em Jatobá, Fazenda na vila de Catolé do Rocha, cujo Major João Batista da Costa Coelho surge nos registros de batismo pela primeira vez em 1837, e aparece até o ano de 1864, levando pelo menos sete crianças escravizadas para batizar. Com base nesses números, inferimos que ele chega a possuir como sua propriedade pelo menos 12 escravizados – contando com as mães dessas crianças. Trata-se de um número muito alto, em se tratando de uma fazenda no sertão paraibano, apontando que o mesmo era um homem abastado e de posses.

Além da escritura de compra e venda, o proprietário também apresenta um registro de um assento de casamento, que teria sido realizado em 26 de novembro de 1827, na região do Brejo da Areia, de Manoel Inácio com Anna Maria, que seria escrava de José Ferreira. Acreditamos que a intenção era  demonstrar que José Ferreira teria condições de possuir escravizados, e de ser, de fato, proprietário de Anna Ignácia quando a vendeu, ainda criança. A trajetória de Anna Ignácia está no Quadro 1, e nos dá uma mostra dos horrores da escravidão, mas também a ação ativa de uma mulher que viveu no interior do Brasil durante o século XIX.

Anna Ignácia, mulher negra escravizada, que lutou com todas suas forças pela sua liberdade e dos seus filhos, em plena vigência do sistema escravista no sertão paraibano

Registramos, por fim, que a história de Anna Ignácia deixa mais questionamentos do que respostas. Não sabemos qual foi o desfecho do processo: se teve andamento, se teria passado mais dez anos lutando por sua liberdade, se a força do sistema conseguiu barrar a força e a vontade de Anna de ser livre? No final das contas, o que podemos constatar é a ação ativa de uma escravizada que conhecia seus mínimos “direitos”, garantidos pela legislação, e buscou dentro da legalidade comprovar sua liberdade e de seus filhos.  

A partir da história de Anna Ignácia, percebemos cada vez mais a importância de estudarmos a atuação e o protagonismo de mulheres negras em diferentes períodos e contextos históricos. Anna Ignácia, e sua história de resistência a um sistema escravista,   patriarcal, desumano e opressor, é mais um exemplo dentre muitas, de mulheres conseguiram sobreviver e reinventar-se como agentes históricas no sertão do Brasil.

 


Reprodução / Card: Reprodução

 REFERÊNCIAS

CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

GALLIZA, Diana Soares de. O declínio da escravidão na Paraíba 1850-1888. Editora Universitária/UFPB, 1979.

LIMA, Maria da Vitória Barbosa. Liberdade Interditada, Liberdade Reavida: escravos e libertos na Paraíba escravista (século XIX). 378 f. Recife, Tese (Doutorado), PPGH/UFPE, 2010.

ROCHA, Solange Pereira da. Gente negra na Paraíba oitocentista: população, família e parentesco espiritual. 425f. Recife, Tese (Doutorado), PPGH/UFPE, 2007.

SOUSA, Anicleide de. Nas veredas negras do sertão: história de vida familiar de escravizados no sertão brasileiro (Vila de Catolé do Rocha/Paraíba, 1836-1866). Dissertação (Mestrado em História), PPGH/UFPB, João Pessoa, 2018. 

*Anicleide de Sousa é professora da Educação Básica e Mestra em História/PPGH/UFPB.
**Este Artigo foi escrito a partir de pesquisa desenvolvida com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/CAPES, com bolsa de estudos, durante o curso de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em História/UFPB.


Prof. Anicleide de Sousa / Foto: Arquivo Pessoal

Edição: Cida Alves