a conquista da liberdade não foi algo “dado” ou “posto”, mas fruto de embates, conflitos
A criança ingênua, lei e experiências de liberdade no fim do escravismo brasileiro
Por Giuseppe Emmanuel Lyra Filho*
Nas últimas décadas, os estudos sobre a escravidão no Brasil vêm buscando ampliar as discussões em torno das experiências da população escravizada diante do sistema escravista. Além disso, os trabalhos históricos também estão mostrando diferentes formas de conquista da liberdade por parte de escravizados no interior do sistema, com disputas nas arenas jurídicas para pleitearem as alforrias. Esse movimento vem em contraposição às ideias cristalizadas em nossa sociedade em que a abolição da escravidão foi algo posto e dado ao escravizados, sem levar em consideração todo o processo de lutas e suas conquistas e os embates dentro do próprio regime escravista.
A luta pela liberdade por meio da Justiça já foi destacada em artigos no Brasil de Fato – Paraíba, como nas trajetórias históricas de Gertrudes Maria (março de 2020) e Anna Ignácia (outubro 2020), contudo, pretendemos destacar essas experiências escravas a partir de um marco temporal mais especifico, a Lei 2.040 de 1871 que instituiu a libertação do ventre escravizado, a criação de um Fundo de Emancipação para promover a libertação entre outras alterações no chamado “elemento servil”. Esse processo que se desencadeou a partir da segunda metade do século XIX e confluiu na aprovação da Lei de 1871 foi marcado por debates e embates políticos, principalmente de membros das elites que queriam um fim gradual da escravidão, sem abalos para os proprietários, e os grupos que defendiam a escravidão; todavia, mulheres e homens escravizados atuaram conforme a lógica deles e, apesar dos limites legais, confrontaram o sistema.
A Lei de 1871 e o projeto de emancipação gradual da escravidão
As discussões políticas em torno de uma saída para a escravidão podem ser percebidas ao longo de todo o século XIX, umas mais contundentes e outras mais tímidas. Contudo. Todavia, na década de 1860 esses debates e embates políticos ganharam proporções maiores e que se colocaram no ano de 1871 como um projeto de lei para a reforma do estado servil brasileiro, pautando questões como a libertação do ventre e a criação de um Fundo de Emancipação do escravizados. Esse projeto tinha um caráter muito específico: a libertação gradual dos escravizados sem abalos às propriedades dos senhores.
Com a libertação do ventre escravizado, entrou em cena um novo personagem jurídico, os filhos livres das escravizadas, chamados de ingênuos. Esses sujeitos, pela Lei de 1871, eram livres, contudo deveriam ficar sob os cuidados do dono da mãe até os oito anos de idade, após isso, deveriam ser tutelados pelos senhores até os 21 anos ou entregues aos Estado para serem direcionados a instituições de cuidados específicas. Percebemos os limites da liberdade desses sujeitos, que viviam na tensão entre o mundo da liberdade e da escravidão. Esse não lugar gerava algumas tensões, como o exemplo de Maria, escravizada do Tenente Coronel Santos da Costa Gondim, que em 1884 fugia levando uma filha ingênua “baixa e grossa saindo-lhe os peitos” e um outro filho ingênuo de três anos de idade (jornal O Liberal Parahybano, Parahyba, 31 de Março de 1884, p. 4, Disponível na Hemeroteca/BN/RJ). Ou seja, a criança mesmo legalmente livre, fugia do cativeiro com sua mãe, pois a liberdade era tutelada e, em geral, fictícia.
Outra tensão entre esse mundo da escravidão e da liberdade se dava na tutela das crianças ingênuas por parte de seus senhores. Ao completar oito anos, as crianças poderiam ficar sob o jugo dos seus senhores até os 21 anos de idade, o que ocorreu de forma marcante em todo o país. Em 1884, os relatórios do Ministério da Agricultura mostravam que dentre 403.827 ingênuos registrados no país, apenas 118 haviam sido entregues aos Estado, enquanto o resto permanecia sob os domínios dos senhores. Essa “liberdade tutelada” deixaria marcas nesse processo de abolição e no pós-abolição do país.
Outro elemento constitutivo da Lei de 1871 dentro do projeto de libertação gradual era o Fundo de Emancipação. Esse fundo funcionava com a obtenção de recursos por parte do governo imperial e que seriam destinados para a libertação de escravizados em todo o país, em que cada província receberia uma quantidade específica. Primeiro era preciso fazer uma matrícula dos escravizados, um registro demográfico que apresentasse os dados referentes à essa população com declaração do nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação.
Feita matrícula, deveria ser realizada uma classificação desses escravizados que receberiam a libertação pelo Fundo de Emancipação. Essa classificação responderia a alguns critérios específicos, tendo prioridade na libertação os sujeitos que atendessem as seguintes características: integrantes de famílias escravas, os indivíduos, os cônjuges que forem escravos de diferentes senhores; os cônjuges, que tiverem filhos, nascidos livres em virtude da lei e menores de oito anos; os cônjuges, que tiverem filhos livres menores de 21 anos; os cônjuges com filhos menores escravos; as mães com filhos menores escravos; os cônjuges sem filhos menores, dentre outras situações.
Seguindo essa classificação, algumas famílias e indivíduos conseguiram a libertação por meio do Fundo de Emancipação. Em documentos da Junta de Classificação de Catolé do Rocha do ano de 1877, foram classificados alguns sujeitos que estavam aptos a receber a libertação. Dentre os sujeitos escravizados estavam Cosme e Victoriano, de 41 e 42 anos respectivamente, que eram casados com mulheres livres. Além deles dois, estavam o casal Joaquim, 39 anos e Ignácia, de 45. Joaquim foi classificado como agricultor e Ignácia como cozinheira. Também foram classificados para obtenção de liberdade a família de dois escravizados dos herdeiros de Anna Joaquina de Jesus de nome Claudino e Francisca, ele com 33 anos e ela com 30, e seus três filhos ingênuos: Francisco, Maria e Manoel.
Alguns escravizados utilizavam o pecúlio (uma reserva de dinheiro que alguns escravizados possuíam) para compor o Fundo de Emancipação e assim obterem as libertações, como os casos de Ponpeu e Francisca em São João do Cariri (sertão paraibano). Pompeu foi avaliado em 1:200$000 réis e Francisca em 600$000 réis. Para a obtenção da liberdade pelo Fundo, Pompeu entraria com o seu pecúlio de 100$000 réis e o Estado pagaria a diferença de 1:100$000 réis e Joana teria suas três cabeças de gado avaliadas, e o valor seria abatido do seu preço de 600$000 réis.
Em Mamanguape alguns escravizados também possuíam pecúlio e utilizaram para a libertação pelo Fundo de Emancipação: Joanna de 57 anos e com um pecúlio de 54$000 réis; Januário de 52 anos com a quantia de 15$000 réis e Joalina de 37 anos com um pecúlio de 20$000. Ao todo, pelos dados ministeriais, o Fundo de Emancipação permitiu a libertação de 926 escravizados em toda a Paraíba entre os anos de 1875 e 1887. Os documentos aqui citados estão disponíveis no Arquivo Histórico da Paraíba.
Outro elemento importante nesse processo de libertação por meio da Lei de 1871 se deu com as ações de liberdade dos escravizados que pleitearam as suas liberdades nos tribunais. A libertação por meio de ações de liberdade era uma prática inserida no direito costumeiro dos escravizados, bem como a formação de um pecúlio/poupança. Antes de 1871, eles poderiam fazer esse tipo de apelação, mas deveriam ter o consentimento dos seus senhores. Com a Lei 2.040 de 1871, isso passou para a esfera do direito positivo e colocava que era um direito dos escravizados formar pecúlio e, caso obtivesse a quantidade de necessária para a sua alforria, poderia entrar na justiça independente da vontade de seus senhores. Os últimos estudos sobre escravidão vêm dando destaque a essa atuação dos escravizados nos tribunais, mostrando que os mesmos tinham conhecimento de seus direitos e atuavam por meio dos dispositivos legais para a conquista de suas liberdades.
Foi o exemplo da escravizada Maria de Campina Grande, que em 1872, após não conseguir um acordo sobre o valor de sua alforria, foi a justiça pleitear a sua liberdade. Luciano Mendonça de Lima apresenta o imbróglio judicial que acabou por favorecer a escravizada, que conquistou a sua liberdade. (LIMA, 2008, p. 313). Nem sempre as disputas judiciais favoreciam o escravizado, a exemplo de Claudino em 1882, identificado por Lucian Silva e Maria Vitória. Claudino, que possuía uma valor para compra de sua liberdade, 50$000 réis, após várias disputas com o seu senhor na justiça, teve o seu preço firmado em 150$000 réis, insuficiente para a compra de sua liberdade (LIMA, 2013, p. 175-190 e SILVA, 2016, p. 140-148). O historiador Daniel de Oliveira também identificou esses casos em Bananeiras, a exemplo de Joaquim em 1880, Izidia em 1882 e Maria em 1884, todos eles utilizando dos dispositivos da Lei de 1871 e de seus pecúlios para conquistarem as suas liberdades na justiça (OLIVEIRA, 2017, p. 125- 139).
A análise da Lei de 1871 no processo de desarticulação do sistema escravista nos apresenta novas possibilidades de entendimento do mundo da escravidão e dos projetos de liberdade dos escravizados, principalmente aqueles que conquistaram a alforria por meio de dispositivos legais. As crianças ingênuas, as famílias que se libertaram pelo Fundo de Emancipação, ou os indivíduos que utilizaram o seu pecúlio e foram à justiça pleitear a liberdade, ampliam o nosso entendimento sobre as experiências e resistências dos escravizados diante da crise do sistema escravista. Nos leva também a compreender o fim da escravidão como um processo, marcado pela atuação dos sujeitos ao longo da história, mostrando que a Abolição e a conquista da liberdade não foi algo “dado” ou “posto”, mas fruto de embates, conflitos e contradições. É preciso destacar a atuação dos escravizados, de seus integrantes de suas famílias e dos inúmeros sujeitos que lutaram pelas suas liberdades, mesmo diante de um projeto de emancipação limitador e gradual, de forma que esses sujeitos se tornem ativos nas nossas narrativas históricas.
Referências
GALLIZA, Diana Soares de. O declínio da escravidão na Paraíba 1850-1888. João Pessoa, Universitária/UFPB, 1979.
LIMA, Luciano Mendonça. Cativos da “Rainha da Borborema”: Uma história social da escravidão em Campina Grande – século XIX. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Recife, 2008.
LIMA, Maria da Vitória Barbosa. Liberdade interditada, liberdade reavida: escravos e libertos na Paraíba escravista (século XIX). Brasília: FCP, 2013.
LYRA FILHO, Giuseppe Emmanoel. Um caminho para a liberdade: a Lei Rio Brnco na crise do sistema escravista paraibano. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, João Pessoa, João Pessoa, 2020.
OLIVEIRA, Daniel de. As estratégias de luta pela liberdade nos últimos anos da escravidão na vila/cidade de Bananeiras-PB (1871-1888). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, João Pessoa, 2017.
ROCHA, Solange Pereira da. Gente negra na Paraíba Oitocentista: População, família e parentesco espiritual. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de
Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em
História, Recife, 2007.
SILVA, Lucian Souza da. Nada mais sublime que a liberdade: processo de abolição da escravidão na Parahyba do Norte (1870-1888). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, João Pessoa, 2016.
*Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro do Grupo de Pesquisa Sociedade e Cultura no Nordeste Oitocentista (GPSCNO). Este artigo foi escrito a partir de pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História/UFPB com apoio da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).
Edição: Heloisa de Sousa