A Jornada busca refletir, portanto, um Tempo Presente de total incertezas
Direitos Humanos em Tempos de Pandemia: povos indígenas, negritude, masculinidades, feminismos, afirmação LBT, masculinidades e subjetividades
Por Elio Chaves Flores* e Solange Banto Rocha**
A Jornada de Direitos Humanos em Tempos de Pandemia, em ambiência virtual, organizada pelo NEABI/UFPB, Bamidelê: Organização de Mulheres Negras na Paraíba; Abayomi: Coletiva de Mulheres Negras na Paraíba e ADUFPB-Sindicato Docente da UFPB, teve como finalidade refletir sobre o Dia Internacional dos Direitos Humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi sancionada no dia 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas/ONU. A DUDHs é composta por trinta artigos declaratórios, mas fiquemos aqui apenas com a ideia do primeiro: nascemos, como pessoas, iguais em dignidade e direitos; somos reconhecidamente dotados de razão e consciência e, devemos agir uns em relação aos outros, com espírito de fraternidade (DUDHs, ONU, 1948).
Os quatros momentos da Jornada procuraram refletir sobre os impactos em nossas vidas e atividades desse conturbado ano de 2020. Um ano de crise globalista, com movimentos de extrema-direita mundializados, negacionistas da ciência, dos direitos humanos e de sociedades abertas. No Brasil, a face desse negacionismo articulou-se pelo arco pandemonista, arrotando a tortura e o Estado policial e, não menos incisivo, salivando o pior da espécie humana: uma sociedade baseada no ódio, nas armas e na mentira política sistemática, numa persistência de práticas necropolíticas.
Vamos tentar seguir aqui, para sermos menos formais, o método da escrita inventado por Lélia Gonzalez, deslizar, de quando em vez, para o coloquial pretuguês. Essas machezas, muitas vezes violentas e, quase sempre, sexistas e patriarcais foram debatidas na Mesa de Debate 1, “Homens, Masculinidades e Subjetividades”, com os palestrantes Roberto Silva, Mestre em Educação e Gestor na Secretaria de Estado da Mulher e Diversidade Humana/SEMDH, Marco Aurélio Paz Tella, doutor em Antropologia, professor e pesquisador no Campus IV/UFPB, com a mediação de Rosivaldo Sá, doutor em Sociologia, professor e pesquisador no Campus II/UFPB), sendo os dois últimos integrantes do NEABI da mesma instituição. Com abordagens de questões como: o que é ser homem? O que é ser um homem antirracista? Quais os movimentos da masculinidade branca e opressora? E o homem negro, o que está aí a dizer de tudo isso?
A Mesa de Debate 2, “Povos Indígenas, Direitos Territoriais e Pandemia”, trouxe à tona a necessária crítica aos estigmas que a cultura eurocêntrica faz recair, há séculos, sobre os povos originários. Os palestrantes serão Jamerson Lucena (Antropólogo), Jacyara Tabajara (Articulação de Mulheres Indígenas da Paraíba) e Poran Potiguara (Engenheiro Florestal e Líder Indígena ), com a mediação de Estevão Palitot, doutor em Sociologia, professor e pesquisador no Campus IV/UFPB e integrante do NEABI da mesma instituição, um momento de reflexão sobre a organização dos povos indígenas, as lutas pelos territórios e as ecologias dos saberes indígenas. Eis uma questão pertinente: por que o Estado brasileiro nega e ignora os saberes indígenas e os seus direitos territoriais? Cacique Raoni sabe das coisas: “Tirem Bolsonaro do poder, ele não é liderança e deveria sair do governo” (REDE TVT, 25/09/2019).
A Mesa de Debate 3, “Mulheres Negras no Contexto da Pandemia”, teve como debatedoras Dandara Correia (Assistente Social com Mestrado e da Bamidelê: Organização de Mulheres Negras), Fernanda Ferreira (Atri-Educadora, Fórum de Artistas Pretas e Pretos da Paraíba e colaboradora do NEABI/UFPB), Uiliana Gomes (Mestranda em Antropologia e Abayomi: Coletiva de Mulheres Negras) e Aniely Mirtes (Grupo de Mulheres Lésbicas e Bisssexuais Maria Quitéria), com a mediação de Durvalina Rodrigues (Mestranda em Antropologia/UFPB e Abayomi: Coletiva de Mulheres Negras e integrante do NEABI/UFPB). Temas como feminismo negro, negritude, orientações e sexualidade pintaram no pedaço do nosso canal de transmissão. Aqui, ainda uma vez, estamos com a incrível Lélia Gonzalez que, escrevendo/dizendo no jornal Mulherio, deixou pra gente perguntas importantes sobre o racismo que afeta as mulheres negras: “Mas como é que esse racismo funciona na cabeça da gente e dos outros? Como é que se sente isso no dia a dia? De que maneira as mulheres e os homens brancos tratam a gente? E os homens negros? Qual tem sido o nosso papel na família e na comunidade que pertencemos?” (GONZALEZ, 1981, p. 3; 2008, p. 109).
Que ano senhoras e senhores! Que ano!
A Jornada de Direitos Humanos em Tempos de Pandemia buscou refletir, portanto, um Tempo Presente de total incertezas como se a nossa humanidade, derrotada e humilhada, sobrevivesse, ainda, por aparelhos e rotinas desesperantes. Tal seria a nossa situação histórica não fosse a resiliência dos que sabem cuidar e curar vidas e a resistência secular dos que apostam − e sempre apostaram – no Estado Democrático de Direito e da exata noção de que onde quer que uma pessoa esteja (na sua casa, na rua, no bairro, na cidade, na escola, na praia, nos parques e praças, na prisão, no tribunal, nos parlamentos) ela é, como pessoa e humanidade com rosto, sujeito de direitos.
Essa dimensão fundante dos direitos humanos já estava lá, no ano de 1222, quando se inaugurou a temporalidade política de Sundiata Keita, no Império do Mali, África ocidental, cenário e tempo dessas palavras proclamadas: “Todas as vidas são uma vida. Uma vida, é sabido, vem sempre antes de outra. Mas uma vida não é mais antiga nem mais respeitável do que a outra, tal como não é superior a outra. [ …]. Se todas as vidas são uma vida, então todo mal causado a uma vida exige reparação”.
O que sabemos disso?
Quase nada, a não ser que a história dos Direitos Humanos é uma invenção ocidental, branca, europeia e estadunidense. Assim se exportaram e ainda se exportam os direitos humanos desde a DUDH, formulada em 1948, depois da “arquitetura da destruição” dos regimes racistas e fascistas de certas Europas e Ásias.
Por isso que a programação do evento aqui tratado teve como abertura o lançamento do livro do pesquisador angolano Domingos da Cruz, Direitos Humanos na Era das Incertezas (Lisboa: Edições Colibri, 2020), cuja epígrafe anotada é justamente extraída da Carta do Mande, datada do início do século XIII da Era Comum. Com efeito, Domingos Cruz que conhece nossas idiossincrasias raciais, pois estudou no Brasil, nesse século exasperante, construiu notável síntese do que nos acometeu (e acomete) no momento em que escrevemos:
O colosso da região, Brasil, com um governo de extrema-direita, que chegou ao poder por meio de um golpe parlamentar, com a contribuição do poder judiciário – capturado por motivações ideológicas e pelo mercado – somam e seguem no processo de desmantelamento dos direitos sociais, na exclusão de quilombolas, índios e negros a favor de uma elite retrógrada «que acredita ser branca» e superior. Por tudo isso, estamos diante de um país que alcançou um grande reconhecimento nos últimos treze anos, e vê agora a sua reputação na lama por causa de uma elite atrasada. A situação política, social, econômica e cultural de um Brasil em retrocesso vertiginoso – que voltou ao mapa da fome, aos assassinatos políticos, à barbárie – é agora a síntese de uma América Latina que, a todo o instante, teme a voracidade imperial dos Estados Unidos que vê no continente vizinho um inimigo a domar (CRUZ, 2020, p. 13).
A cidadania da qual necessitamos não pode tolerar nem a gestão predatória nem o achismo jurídico nem a autoridade miliciana. Daí uma jornada de direitos humanos constar num fechamento de semestre remoto: #VidasNegrasImportam! #VidasIndígenasImportam! #VidasdeMulheresNegrasImportam!
REFERÊNCIAS
CACIQUE RAONI. Tirem Bolsonaro do Poder. Entrevista, 19/09/2019. REDE TVT. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=7NV6t5ekpUE
CRUZ, Domingos da. Direitos Humanos na Era das Incertezas. Lisboa: Edições Colibri, 2020.
CRUZ, Domingos da (Org.). África e Direitos Humanos. Jundiaí-SP: Paco Editorial, 2014.
GONZALEZ, Lélia. Democracia Racial? Nada disso! [1981]. In: GONZALÉZ, Lélia. Primavera para as Rosa Negras. São Paulo: Editora Filhos da África, 2018, p. 109-111.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDHs, 1948. In: DGNET.ORG.BR. Versão Integral. Disponível: http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm
* NEABI, DH, PPGH, PPGDH/UFPB
** NEABI/DH/PPGH/UFPB
Edição: Heloisa de Sousa