Paraíba

Memória Histórica

Dossiê Grupo da Várzea – Parte I: Herdeiros de Oligarquias e Fazedores de Fortunas

No primeiro de uma série de artigos, as origens oligárquicas do futuro grupo e a construção de seus “impérios” até 1930.

João Pessoa |
Flávio Ribeiro Coutinho, ex-governador da Paraíba (1956-1958), “formou” o embrião do grupo da Várzea. - Internet

Por Zênia Chaves Araújo de Melo*

 

Ao final dos anos 1950 e até, aproximadamente, meados dos anos 1980, na Paraíba, o termo Grupo da Várzea era imediatamente relacionado à riqueza, ao poder político e aos conflitos agrários. Tratava-se, então, de algumas famílias possuidoras de vastas extensões de terras e usinas de processamento de cana de açúcar situadas na várzea do Rio Paraíba (daí o termo Grupo da Várzea), em especial nos municípios de Santa Rita, Sapé, Cruz do Espirito Santo, Alagoa Grande, Itabaiana e Pilar. 

Dentre elas, destacavam-se os Ribeiro Coutinho e os Veloso Borges (ao lado de outras como Lundgren, Santiago e Cartaxo), que são objeto das nossas pesquisas no curso de pós-graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Na primeira, Flávio e Renato (tio e sobrinho) foram as lideranças mais proeminentes, enquanto Agnaldo se tornou o mais conhecido pelo lado dos Veloso Borges. Ambas as famílias eram herdeiras de oligarquias existentes desde a Primeira República (1889-1930), provavelmente proeminentes desde o Império (1822-1889), visto que chegaram, no início do período republicano, já ocupando cargos de poder político e/ou como latifundiários. 

Pretendemos, numa série de artigos, apresentar, de forma bastante resumida, as origens oligárquicas dessas duas famílias, a construção dos seus “impérios” e sua participação na política paraibana no período que vai de 1913 a 1964 e que corresponde às nossas pesquisas em andamento. Tais artigos abrangerão as seguintes temporalidades: 1) de 1913 a 1930; 2) de 1931 a 1945; 3) de 1946 a 1958 e 4) de 1959 a 1964. Algumas dessas datas referem-se a eventos marcantes na história política nacional e outras têm lugar na história das famílias e das ações do Grupo. Em cada artigo, identificaremos o porquê do recorte temporal.

As origens dos Ribeiro Coutinho

Vamos, então, ao nosso primeiro período (1913 a 1930), abordando, inicialmente, a família Ribeiro Coutinho. O ano de 1913 marca o retorno de Flávio Ribeiro Coutinho à Paraíba, depois de formado em medicina na Bahia e de um período de residência no Pará. Flávio nasceu em 1882, em Pilar, filho de João Ribeiro Coutinho, pernambucano, e de Anna Maroja, irmã de Flávio Maroja, também médico, membro da Primeira Assembleia Constituinte e Legislativa da República (1891-1894) e fundador do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba (IHGP). João e Anna tiveram 12 filhos, sendo 7 mulheres (sobre elas quase não se tem dados) e 5 homens: Odilon, João Úrsulo, Flávio, Flaviano e Francisco Leocádio (presume-se que este faleceu enquanto criança, enquanto outras fontes citam uma criança de nome Pedro). 

Dos quatro filhos homens sobreviventes, Odilon, o primogênito, bacharel, foi “chefe político” de Itabaiana até por volta de 1920, quando “entregou” a chefia a Flávio. João Úrsulo também era bacharel, político e, em 1928, já testava álcool como combustível nos tratores da Usina São João. Casou com Helena Pessoa, pernambucana, herdeira da Usina Aliança, uma das maiores de Pernambuco.  Flaviano, agrônomo, também político, casou com Celeste Teixeira, neta do Barão de Maraú, que hospedou Dom Pedro II e sua comitiva em 1859. Flávio casou-se com sua sobrinha Berenice, filha de sua irmã Débora. Com a morte de João Úrsulo em 1930, ele passa a liderar a família, não só administrando e expandindo o seu patrimônio como também ocupando e ampliando os espaços políticos antes controlados por seu tio materno Flávio Maroja. 


João Úrsulo Ribeiro Coutinho, pai de Renato Ribeiro Coutinho, que viria a liderar o Grupo da Várzea. / Internet

Assim, nos anos seguintes, fundou e presidiu, até sua morte, a UDN (União Democrática Nacional) paraibana, disputou eleições estaduais, controlou a prefeitura de municípios, criou e dirigiu o Sindicato do Açúcar e do Álcool (também até sua morte), presidiu a Associação Comercial da Paraíba, presidiu a Assembleia Constituinte de 1947, “formou” o embrião do grupo da Várzea tendo seu sobrinho Renato como sua grande liderança, elegeu-se governador do estado em 1955 e licenciou-se da governança em 1958 devido a um acidente vascular cerebral, vindo a falecer em 1962 no Rio de Janeiro. 

Flávio Ribeiro Coutinho, segundo Osvaldo Trigueiro, ex-governador da Paraíba (1947-1951), era um “autêntico representante da aristocracia rural da Paraíba. Isso quer dizer que ele nasceu, viveu e morreu como membro da classe dominante da sociedade paraibana, no período que vai da Independência à Revolução de 1930. [...] significa que ele se distinguia como rebento das famílias brancas, cujo status tradicional assentava da propriedade da terra, explorada até 1888 pelo trabalho servil.”. Acrescentamos que sua participação como membro da elite dominante foi muito além da “Revolução de 30”.


Flávio Ribeiro Coutinho, “autêntico representante da aristocracia rural da Paraíba". / Internet

Dessa minimíssima biografia familiar, quatro aspectos necessitam, de imediato, ser ressaltados: 
1) o fato dos quatro irmãos terem formação superior, coisa raríssima naqueles tempos, devido aos altos custos, evidenciando, assim, o nível de riqueza da família; 
2) Odilon, o primogênito, foi o único a ter Maroja no seu sobrenome, sugerindo, segundo a antropóloga canadense Margo Matwychuck, que estudou a família, a pretensão de João Ribeiro (o pai) de desvincular-se de uma antiga oligarquia (no caso, os Maroja) com vistas à constituição de uma “nova elite” (talvez por isso, os filhos não ficaram conhecidos como “coronéis”, embora o fossem); 
3) observar que todos os irmãos, bem como seus pais, tios e avôs, em algum momento da história, ocuparam cargos políticos federais, municipais e estaduais; 
4) a utilização do casamento como estratégia para acumulação/preservação de capital e bens, principalmente terras, além de relações sociais que “abriam portas”: por exemplo, a esposa de João Úrsulo, Helena Pessoa, morta por febre tifoide aos 35 anos e deixando sete filhos, além de ter trazido um considerável dote que ajudou a comprar várias usinas na Paraíba, era cunhada de José Ermírio de Moraes, pai do futuro senador, ministro e industrial Antonio Ermírio de Moraes. O próprio Flávio casou com sua sobrinha, uma forma de manter na família os bens materiais. Posteriormente, a geração seguinte à de Flávio, viu outro Odilon (sobrinho) casar com uma sobrinha de Agnaldo Veloso Borges. 

Segundo outro pesquisador, o paraibano Marciano Monteiro, a família Ribeiro Coutinho possui entroncamento também com os Figueiredo (de Argemiro Figueiredo, ex-interventor paraibano em 1935-1940), com os Vital do Rêgo (do atual senador Veneziano Vital do Rêgo Neto e do atual ministro do TCU Vital do Rêgo Filho), com a família Cabral (de Severino Cabral, também ex-prefeito de Campina Grande) e com os Ribeiro de Enivaldo Ribeiro, ex-prefeito de Campina Grande, casado com Virgínia Veloso Borges, a quem voltaremos mais adiante.

As origens dos Veloso Borges

O núcleo da família Veloso Borges (da qual dispomos de menos informação) era formado por quatro irmãos: Manuel, Virgínio, Agnaldo e Claudino, sendo este último mais presente nos negócios. Todos naturais de Pilar, foi nesse município, onde localizavam-se suas terras, que criaram gado e plantaram algodão. Posteriormente, em 1924, compraram a fábrica de tecidos Tibirí em Santa Rita e a usina Tanques (em 1926) em Alagoa Grande. 


Manuel Veloso Borges, primogênito da oligarquia / Internet

Manuel Veloso Borges (1885-1959), primogênito, médico, foi deputado estadual em 1929 e em 1933, e senador em 1935; presidiu a Associação Comercial da Paraíba por três gestões consecutivas (1925/26, 1926/27 e 1927/28) e foi membro da sua direção até 1930. Virgínio, também político, fundou a seção da Ação Integralista Brasileira em Santa Rita visando cooptar os operários da sua fábrica e, como os irmãos, participou ativamente das articulações políticas daqueles anos pré-revolução de 1930. Agnaldo (supomos ser o caçula) começa a aparecer na historiografia a partir das disputas pela prefeitura de Santa Rita que veremos no próximo artigo

A constituição do poderio econômico

Foi nesse período, em especial a partir do ano de 1922, que a família Ribeiro Coutinho, dona da Usina São João desde 1914, começa a ampliar seu patrimônio, adquirindo as usinas Cumbe, Bonfim, Espírito Santo e São Gonçalo (todas em 1922), parte da Usina Pedroza em 1925 e, em 1928, a N.S. do Patrocínio e a outra parte da Pedroza. Todas elas mudaram de nome ao serem compradas. Em 1926, Agnaldo Veloso Borges compra a Usina Tanques em Alagoa Grande. Em todas essas transações, houve incentivo governamental, como abatimento de 50% no valor do Imposto sobre Transmissão de Propriedade e isenção de tributos estaduais que, em alguns casos, chegava a 15 anos. Aqui, o importante a ficar registrado é que nesse período se forma a base do poderio econômico que daria origem ao poderoso Grupo da Várzea.

Com relação à conjuntura política estadual e nacional, lembramos que, ao final desse período, o país estava em ebulição devido à campanha presidencial que opunha a chapa da Aliança Liberal, com João Pessoa candidato a vice de Getúlio Vargas, à chapa oficial apoiada pelo governo de Washington Luís e encabeçada por Júlio Prestes, que ganhou, mas não levou devido à revolução de 1930. Na Paraíba, a situação era extremamente tensa: a candidatura de João Pessoa provocou sérias retaliações ao estado por parte do governo federal, além de ser simultânea à revolta armada de Princesa e à crise econômica mundial resultante da quebra da bolsa de Nova York em 1929, que abalou as exportações de algodão e açúcar. 

Com relação às principais famílias do Grupo da Várzea, os Veloso Borges apoiaram os aliancistas (oligarquia dos Pessoa) e os Ribeiro Coutinho defenderam a candidatura Prestes, devido a disputas de poder com a oligarquia Pessoa em Itabaiana. O assassinato – por motivos não políticos – de João Pessoa e a “revolução de 30” dão início a uma nova fase na história do país e da Paraíba.


* Bancária aposentada, ex-dirigente sindical, bacharelada em Sociologia e Ciência Política pela UFRN e licenciada em História pela UFPB. Atualmente é aluna do Programa de Pós-Graduação em História da UFPB (PPGH/UFPB).
 

Edição: Cida Alves