Essa semana temos assistido a fatos políticos que, certamente, entrarão para a história. A nulidade dos atos decisórios da Operação Lava-Jato contra o ex-presidente Lula na segunda-feira (08) por decisão monocrática do ministro Luiz Edson Fachin, o prosseguimento da votação da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro pela 2ª turma do Supremo Tribunal Federal (STF) ontem (09) com os contundentes votos dos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, e o discurso agudo e perspicaz de Lula hoje (10) no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista colocaram o mundo político em ebulição. As avaliações, balanços e desdobramentos de tais acontecimentos ainda estão em curso e, da direita à esquerda, pululam análises as mais diversas.
À direita, salta à vista a estupefação da grande mídia empresarial corporativa, seu pasmo diante da reviravolta provocada pela decisão de segunda-feira. Claramente, tratava-se de manobra para salvar a Operação Lava-Jato (e o próprio Fachin, afinal, segundo os procuradores da força tarefa, “haha, huhu, o Fachin é nosso!”, como revelaram mensagens vazadas e reveladas pelo site The Intercept Brasil).
No cálculo do ministro, ao acatar, após quase cinco anos, o recurso da defesa de Lula questionando a competência da 13ª Vara Federal, onde estava lotado o então Juiz Sérgio Moro, estaria perdido o objeto do Habeas Corpus em que os advogados do ex-presidente pediam a suspeição do ex-juiz, que claramente atuou de forma parcial e persecutória contra Lula.
O estratagema era “ceder os anéis para não perder os dedos”, como diz o provérbio. Pois, se declarada a suspeição de Moro, o edifício da Lava-Jato seria demolido de alto a baixo, caindo inclusive sobre a cabeça de Luiz Édson Fachin.
O ardil, no entanto, não funcionou. Ainda em meio ao terremoto da restituição dos direitos políticos de Lula, o ministro Gilmar Mendes, presidente da 2ª turma do STF, retomou o julgamento do pedido de suspeição em evidente reação ao artifício de Fachin. Em polvorosa, as empresas de comunicação transmitiram ao vivo a sessão na qual Mendes, em tom dramático, desvela o projeto lavajatista de construção de um estado paralelo (inclusive com a apropriação do dinheiro recuperado em um fundo a ser administrado pelos procuradores), a sanha autoritária e o abandono do devido processo legal, a cumplicidade promíscua dos oligopólios da comunicação, entre outros elementos.
O ministro Lewandowski, o mesmo que autorizara a defesa de Lula a ter acesso às mensagens obtidas na operação Spoofing meses atrás, também anunciou seu voto de forma incisiva, ratificando a posição de Gilmar Mendes.
Mesmo a ministra Cármen Lúcia, que já havia votado antes contra a suspeição de Moro, deu sinais de possível mudança de voto. Manifestamente perdido, o ministro Kássio Nunes Marques, indicado por Jair Bolsonaro, pediu vistas ao processo, interrompendo provisoriamente o julgamento. Certamente, irá avaliar junto ao presidente da república qual deve ser sua posição.
Aliás, o prolongado silêncio do Planalto a respeito da decisão de Fachin foi sintomático. Interessa a Bolsonaro eliminar politicamente Sérgio Moro, com quem divide uma base eleitoral conservadora antipetista e a quem as organizações Globo e afins bajulam como possível candidato em 2022.
Todavia, o presidente enfrenta seu pior momento no governo: o caos sanitário com recordes diários de novos casos e de novos óbitos (ontem, o Brasil superou os EUA e se tornou o principal foco da pandemia), a total incompetência na aquisição e distribuição de vacinas, o desemprego e o agravamento das condições de vida dos trabalhadores sem o auxílio emergencial desde janeiro fizeram a popularidade do presidente e a avaliação do governo caírem aos níveis mais baixos desde sua posse.
O auxílio emergencial (aprovado pelo congresso no ano passado contra a posição de Bolsonaro) arrastou para sua base, na ocasião, uma parte da massa trabalhadora marginal (ou subproletariado, como alguns preferem), compensando a relativa perda de apoio em setores médios desencantados diante da saída do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro e com a condução desastrosa da pandemia.
Esse subproletariado foi o mesmo que Lula conseguiu atrair para sua base eleitoral a partir de 2006 e que deu sustentação ao Lulismo como fenômeno político. Por meio de políticas de transferência de renda e de inclusão social, essa fração de classe construiu uma identidade sem intermediadores com o ex-presidente, que o faz maior, politicamente, que o próprio Partido dos Trabalhadores. Se Bolsonaro contava em polarizar com um candidato do PT em 2022, explorando novamente a narrativa antipetista, não estava prevista a possibilidade de defrontar-se com Lula.
Certamente é dessa avaliação que dependerá o voto de Nunes Marques. Por um lado, a suspeição de Moro, se acatada, o interdita politicamente, mas impede a convalidação de seus atos decisórios pelo novo juiz que assumirá o caso no Distrito Federal. Ou seja, o processo necessariamente começaria do zero, inclusive sua fase de instrução. Isso o próprio Lewandowski já sinalizou em seu voto ontem, recuperando o “princípio da árvore envenenada”: um processo que é viciado desde o início não pode “gerar frutos” sãos.
Por outro lado, se a suspeição for derrubada (reabilitando politicamente Moro, pelo menos parcialmente), o novo juiz pode aproveitar a fase de instrução realizada até então e que é a mais demorada (depoimentos, coleta de provas, etc.), acelerando o trâmite processual. Seria, então, possível uma nova condenação em 1ª e em 2ª instância em tempo hábil para tornar Lula novamente inelegível antes do processo eleitoral de 2022? Esse é, hoje, o cálculo político que faz o Planalto (e seu preposto no STF, Nunes Marques).
Aliás, a mídia oligopólica parece já dar como “favas contadas” que Lula chegará elegível em 2022. E, assombrada com o fantasma do eterno inimigo ressuscitado e cada vez mais vivo, debulha-se em pranto, anunciando a visão apocalíptica de uma disputa entre os “extremismos de direita e de esquerda” nas próximas eleições presidenciais.
A desonestidade intelectual de buscar igualar Lula a Bolsonaro é a expressão do medo de ver derreter-se a construção de uma candidatura de “centro” (leia-se, da direita tradicional, de preferência tucana ou de um outsider sob seu controle, da estirpe de um Luciano Huck).
Desorientados, Globo, Folha de São Paulo e Estadão, eternos fiadores dos crimes da Lava Jato, contorcem-se diante dos fatos e das denúncias de sua cumplicidade, como bem se viu no Jornal Nacional de ontem, diante da crítica mordaz que Mendes e Lewandowski fizeram a essa imprensa. Crítica que só não foi mais acachapante que a perpetrada hoje pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva em seu pronunciamento.
Assiste-se, portanto, aos diversos atores da cena política digladiarem-se em suas contradições. O governo federal, por si só, constitui um arranjo político extremamente instável, no qual se faz cada vez mais presente as Forças Armadas (FFAA), em atrito com o núcleo neofascista (olavistas, gabinete do ódio, etc.) e com a equipe econômica ultraliberal de Paulo Guedes, cada vez menos prestigiado. Diante do desgaste político e da necessidade de conquistar a presidência da Câmara e apoio no Senado, o governo se viu obrigado a fazer concessões cada vez maiores ao chamado “Centrão”, de modo a garantir a governabilidade e evitar um processo de impeachment.
Por sua vez, parte do STF, tendo Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski à frente, parece buscar uma lenta, gradual e segura reabilitação democrática conservadora. Assim, debate-se contra as propensões autoritárias do projeto lavajatista e a subversão do sistema judicial, visando restabelecer o princípio da hierarquia dentro do aparelho de justiça e preservar o establishment político, bem como conter a sanha golpista do bolsonarismo (investigação contra os organizadores dos atos antidemocráticos e das fake news).
A mídia corporativa divide-se no apoio subserviente (mas ao preço de boas verbas publicitárias) ao governo Federal (Record, SBT, Band, etc.) e na construção de uma alternativa conservadora, neoliberal e pró-imperialista tradicional, endossando as barbaridades da Lava-Jato (Globo, Folha, Estadão, etc.).
No seio dessas contradições no “andar de cima” da cena política, alianças e conflitos se sucedem de forma vertiginosa, agravando as crises política e institucional, as quais, associadas às crises econômica, social e sanitária, dão a expressão mais acabada de uma crise orgânica, no termos definidos por Antônio Gramsci. Crise orgânica na qual se evidenciam uma crise de hegemonia e uma crise de representatividade.
Crise de hegemonia na medida em que o bloco no poder, sob a égide do capital financeiro internacional e a fração da burguesia brasileira a ele associada, encontra dificuldades de levar adiante o projeto ultraneoliberal contra as classes populares, contando com seu consentimento ativo.
Mas também porque, embora unificadas em torno do projeto de desmonte dos direitos trabalhistas e ampliação da exploração de mais-valia como via para recuperação da taxa média de lucro, as demais frações do capital batem-se por seus interesses específicos (fato que se verifica, por exemplo, nas divergências em torno da política externa, cuja subordinação aos interesses estadunidenses e o discurso anti-China por parte do chanceler Ernesto Araújo já trouxeram diversas reações por parte do agronegócio, que tem no país asiático seu principal mercado).
Crise de representatividade que, segundo Nicos Poulantzas (em Fascismo e Ditadura, 1970), é típico do período de fascistização, cujas características são facilmente identificáveis na presente conjuntura nacional. Quebra-se o laço entre representantes e representados. Entre, de um lado, os partidos e intelectuais orgânicos das diversas classes e frações de classe dominantes na cena política e, do outro, essas mesmas classes e frações que compõe o bloco no poder. Exemplo claro disso é Rodrigo Maia (DEM), ex-presidente da Câmara, que ficou com a “brocha na mão” nas recentes eleições parlamentares, sem conseguir fazer seu sucessor: o bloco no poder fechou com o candidato de Bolsonaro e abandonou Maia.
Crise de representatividade que também atinge as classes trabalhadoras. E é aqui que devemos ter cautela: é verdade que as contradições intraburguesas na cena política, contradições que ocupavam o primeiro plano, abriu uma brecha para as classes trabalhadoras com a recuperação dos direitos políticos de Lula e sua elegibilidade, possibilitando que seus representantes saiam do fundo da cena; mas isso só será possível se a esquerda reconstruir os vínculos com os trabalhadores.
Em outras palavras: sem deixar de reconhecer o mérito inquestionável da campanha Lula Livre e do esforço do conjunto da militância, a reabilitação do ex-presidente, em última instância, não é o resultado de um amplo movimento de massas organizado, mas dos conflitos no seio dos representantes das classes dominantes. Isso significa que se abriu uma janela de oportunidade que só será aproveitada se a esquerda for capaz de reconstruir laços com a classe.
Trabalho de base, ações de solidariedade, organização popular seguem sendo os grandes desafios estratégicos. Sem esses elementos e sem uma sólida unidade no campo da esquerda, as movimentações táticas (dentro das quais se inserem a política de alianças e os debates sobre frente ampla, frente popular ou frente única) tendem a se esvaziar.
Se for possível viabilizar uma candidatura Lula 2022 (e não podemos ter certeza nem de que haverá eleições), seu programa, sua força e seu arco de alianças dependerá do seu grau de sustentação popular. Obviamente que, sendo a realidade dialética, a oportunidade que se abre pode potencializar a superação de tais desafios. Mas isso exige clareza sobre qual a verdadeira profundidade e extensão da derrota estratégica de que fomos vítimas em 2016 e da qual ainda buscamos nos levantar.
Se, por um lado, não devemos cair na armadilha de análises pessimistas que partem do princípio de que tudo é um plano muito bem orquestrado com agentes perfeitamente coordenados para “limpar” a Lava-Jato (desconsiderando as contradições e os erros dos inimigos) com tudo calculado para prender Lula novamente, ou de análises rasteiras pelas quais tudo é um plano da burguesia (concebida como um todo homogêneo e onisciente) para contar com Lula caso seja necessário amenizar tensões sociais no futuro; por outro, não podemos nos iludir com um otimismo que mascara a realidade e a real dimensão da luta. Ambos, pessimismo e triunfalismo, conduzem à paralisia.
Lembremos que não há indícios de que as FFAA estejam divididas. Esse é um novo ator na cena política desde o governo Temer e que retornou após anos de isolamento ressentido, sem esconder sua propensão autoritária e seu anticomunismo paranoico, saudosista da ditadura militar.
Autoritarismo que sempre foi público da parte de Jair Bolsonaro, que tem, ao seu redor, um núcleo neofascista que sempre teve como objetivo estratégico uma ruptura que permita a instauração de uma ditadura sustentada por amplo movimento de massas. Movimento neofascista que faz da luta ideológica o centro de suas movimentações e que busca organizar milícias no campo e nas grandes cidades.
A reação de tais atores (em especial, das forças de segurança) é, hoje, decisiva.
O desafio, por conseguinte, é enorme: exige a construção de força social organizada, luta ideológica para elevar o nível de consciência de classe, uma perspectiva estratégica que recoloque o poder de Estado no centro das formulações e das ações de uma vanguarda reoxigenada e a luta de classes como baliza da “análise concreta da situação concreta”, como afirmava Lênin. Se a esquerda não for capaz de reconhecer os erros estratégicos anteriores, verá, como dizia o poeta Cazuza, “o futuro repetir o passado”, mas, emendando com Marx, dessa vez como farsa.
Edição: Cida Alves