A idealização da brancura e o mito da democracia racial [...] tiveram muita força neste Estado
Por uma compreensão da Paraíba como parte de uma região negra
Por Surya Aaronovich Pombo de Barros*
Quando estava organizando a mudança de Salvador para João Pessoa em 2009, escutei de uma amiga baiana: “pois é... você vai mudar do Estado mais negro para o mais branco do Brasil”. Foi com a ideia de uma região predominantemente branca que cheguei em terras paraibanas. Essa é a imagem que, durante muito tempo, a Paraíba fez de si e projetou para o resto do Brasil. Algumas questões ajudam a entender isso. Por exemplo, a pretensa herança holandesa, resultado do período de ocupação, sobrevive no imaginário local e é valorizada em nomes de condomínios e centros comerciais como “New Holland”, “Holanda´s Prime”, “Amsterdam”, entre outros que remetem a essa origem. A idealização da brancura e o mito da democracia racial, presente em todo o país, tiveram muita força neste Estado, vizinho a Pernambuco, terra de Gilberto Freyre. As ideias freyreanas influenciaram a historiografia paraibana durante muito tempo e isso também pode ter contribuído para a ideia de que a Paraíba é uma região branca.
No entanto, um olhar mais atento pode desfazer essa impressão. A lembrança de que a ocupação holandesa durou apenas duas décadas e aconteceu no século XVII (1634-1654), a expressiva presença negra e indígena na conformação social e cultural da região, a existência de mais de 40 comunidades quilombolas em todo o território paraibano - do litoral ao sertão, em áreas urbanas e rurais, a resistência indígena em diferentes regiões, especialmente próximas à Capital, a significativa quantidade de artistas negros/as de diferentes áreas e gerações, e que muitas vezes tocam nas questões raciais, são exemplos da negritude paraibana. Nomes como o de Chica Barrosa, “a rainha negra do repente”, nascida em 1867; do artista plástico Tomás Santa Rosa Jr., atuante na primeira metade do século XX; o “rei do ritmo” Jackson do Pandeiro, nascido em 1916; o grupo Jaguaribe Carne e Cátia de França, que se destacam na música brasileira desde os anos 1970; o artista plástico e agitador cultural Nae Gomes; Escurinho e Chico César e Totonho, Sandra Belê, cantores/a e compositores/a que fazem sucesso local e nacionalmente; HxxXavier, Bixarte, Filosofino, Sinta a Liga Crew, compõem músicas que denunciam racismo, homofobia e transfobia, machismo, entre muitas outras e outros que poderiam ser aqui apresentados, exemplificam isso. Grupos tradicionais de Coco de Roda ligados a diferentes comunidades quilombolas, cirandeiras como Vó Mera, reforçam essa existência.
A militância negra, com campanhas de afirmação da identidade positiva negra vem contribuindo para a mudança do olhar sobre a região e pressionando por políticas públicas de inclusão e equidade racial. A campanha “Morena/o não, eu sou Negra/o!”, realizada pela organização de mulheres negras paraibanas Bamidelê, é um exemplo disso. Nas universidades e institutos federais, Núcleos de Estudos e Pesquisas Afro-brasileiros congregam ativistas e acadêmicos/as que realizam ações públicas e pesquisas científicas visando a modificação da realidade paraibana e brasileira.
Os dados estatísticos, por sua vez, também descortinam a presença negra na Paraíba. Segundo o Censo 2010, 58,5% dos que responderam à pesquisa se afirmam pretos/pardos. Essa importante presença negra na composição da população não é um dado recente. Segundo a historiadora Solange Rocha, em 1811 “a população da Paraíba era composta principalmente por negros (73.794 de um total de 122.407), sendo 61.458 de pardos e 12.336 de pretos. No que se referia à condição jurídica uma maioria de negros era de livres (56.161) e uma minoria de escravos (17.633); em 1872 “da população total (376.226) a maioria era negra, isto é, somavam 221.938; dessas, 188.241 eram pardas e 33.697 pretas(...). Uma parte menor da população exemplificada era escrava, 21.526 cativos, e a ampla maioria de livres, 354.700 pessoas” (ROCHA, 2009, p. 112). Tais dados, aliados aos de pesquisas sobre outras regiões, nos provocam a refletir sobre a relação dessa parcela da população com a educação escolar a partir de sua institucionalização, durante o período imperial.
Como acontece com diferentes regiões brasileiras, durante muito tempo o senso comum era (e, para muitos, ainda é) que pessoas negras não se relacionaram com o universo letrado, ao menos durante a vigência da escravidão. Atualmente, sabemos que uma gama de possibilidades abarcava o que denominamos de populações negras: livres, escravizados, libertos/forros, negros, pretos, pardos, ingênuos, assim como outras classificações.
Apesar das proibições legais e das interdições dos costumes, esses grupos se relacionaram com o universo letrado de diferentes maneiras. Publicações na imprensa mostram escravos com habilidades de ler e escrever como no anúncio do Argos Parahybano, de 1854, no qual se descrevia um fugitivo da seguinte maneira: “sabe mal ler e escrever e cria bigode para passar por forro”. No Jornal da Parahyba, em 1879, se dizia: “Tem os signaes seguintes: estatura regular, cheio de corpo, falta de um dente na frente, idade de 22 annos, sem barba, sabe ler e escrever”. Textos na imprensa, como noticiado no O Publicador, também revelam a frequência negra em aulas regulares. Nele, o professor público Graciliano Fontino Lordão se defendia da acusação de ter castigado os alunos, explicando que na segunda-feira, 13 de julho de 1868, ao chegar na aula, “foi o meu primeiro serviço syndicar a desordem e todos seus pormenores, sendo castigados com seis palmatoadas cada um de seus autores, em cujo numero achava-se o filho da escrava”. O documento não somente nos apresenta um professor negro como denuncia a presença de crianças de origem escrava em sala de aula. Na documentação da instrução pública do século XIX, outros indícios de alunos negros aparecem, como nos referentes ao Colégio de Educandos e Artífices, destinado a órfãos e desvalidos, cujo regimento determinava que, na matrícula, se declararia entre outras informações, “cor e mais sinais característicos” do educando (Parahyba do Norte, Regulamento do Colégio de Educandos Artífices, 06/12/1865).
Entre esses sujeitos, alguns nomes se destacaram por seu acesso à instrução e espaços de prestígio. Eles foram professores de primeiras letras e do Liceu Paraibano, importante instituição de ensino secundário; bacharéis em Direito; jornalistas; autores de livros de ficção e de obras técnicas; que viveram na segunda metade do século XIX e início do XX. Identificados com termos como “ingratidão da cor”, “mestiço”, “de côr”, “mulato”, (BITTENCOURT, 1914), “pretinho” (MEDEIROS, 1940), sujeitos como o Professor, deputado provincial e coronel Graciliano Fontino Lordão; o Padre Ricardo Rocha; o arquiteto e escritor Vicente Gomes Jardim; o advogado, professor, jornalista, abolicionista e deputado geral Manuel Cardoso Vieira; o poeta e funcionário público Elyseu César, a professora Adélia de França; entre outros, participaram ativamente do universo letrado paraibano.
Refletir sobre essas trajetórias não significa esquecer as diferenças entre ser branco ou branca e negro ou negra na Paraíba. Assim como em outras regiões brasileiras, o racismo foi responsável pela exclusão e continua definindo as experiências negras nas escolas. É fundamental identificar como os processos educacionais são permeados pela desigualdade racial: na relação entre docentes e estudantes; nos materiais escolares, jogos e brincadeiras; nos conteúdos que são ensinados.
Quando pensamos nesse currículo, é patente a ausência de homens e mulheres negros e negras que participaram ativamente da construção da Paraíba. Eles e elas nomeiam escolas, instituições, logradouros, mas ainda são desconhecidos por grande parte dos/as paraibanos/as. Na escola, poucos e poucas docentes conhecem e apresentam para estudantes suas histórias. O contato com suas existências e o estudo sobre suas trajetórias em escolas e cursos superiores podem ajudar a desmistificar a imagem de uma Paraíba branca, reforçando a importância de repensar a história brasileira a partir da participação negra.
Convido a quem lê este texto que preste atenção ao passar na rua Adélia de França, (Guarabira), na rua Cardoso Vieira (Santa Rita), na rua Elizeu César e na Escola Estadual Adélia de França (João Pessoa), na Escola e na Maternidade Graciliano Fontino Lordão (Rio Grande do Norte), e se questionem sobre quem são aqueles e aquelas que nomeiam tais locais, de modo a compreender melhor a história paraibana.
Para saber mais:
BARROS, Surya Aaronovich Pombo de. Universo letrado, educação e população negra na Parahyba do Norte (século XIX). Tese (Doutorado em Educação). Universidade de São Paulo, 2017. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis///48/48134/tde-13062017-113159/pt-br.php
BARROS, Surya Aaronovich Pombo de. História da Educação da população negra: entre silenciamento e resistência. Pensar a educação em Revista, Curitiba/Belo Horizonte, ano 3, vol. 4, jan-mar 2028. Disponível em: http://pensaraeducacaoemrevista.com.br/2018/04/25/pensar-educacao-em-revista-esta-o-ar/#:~:text=O%20texto%20tamb%C3%A9m%20prop%C3%B5e%20uma,%C3%A1rea%20de%20Hist%C3%B3ria%20da%20Educa%C3%A7%C3%A3o
CAVALCANTE, Simone Joaquim. Entre a história e a memória: Adélia de França, uma professora negra na Paraíba do século xx (1926 1976). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Paraíba, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/5983?locale=pt_BR
ROCHA, Solange Pereira da. Gente negra na Paraíba oitocentista: população, família e parentesco espiritual. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco, 2007. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/7133
*Professora de História e de Educação da UFPB e Participante do NEABI/UFPB
Edição: Heloisa de Sousa