Paraíba

Coluna

Um Kremlin de incertezas: taxação de cereais na Rússia e segurança alimentar mundial

Imagem de perfil do Colunistaesd
Trigo russo - Artem Kreminsky/Sputnik
Essa medida protecionista lança o mercado internacional em mares incertos

Por João Carlos Barbosa*

Sob o comando de Vladimir Putin desde os anos 2000, a Rússia obteve êxito em controlar o cenário econômico caótico causado pela dissolução da União Soviética. Nesse cenário, dois mecanismos são de fundamental destaque quando se trata da arte de governar do Kremlin: a Doutrina Russa (DR) e a Estratégia de Segurança Nacional da Federação Russa (ESNFR), documentos que traçam meios e perspectivas para o alcance da segurança nacional e do desenvolvimento econômico, de forma entrelaçada.

Um ponto sensível que tange a ambos é a questão da segurança alimentar que, por meio do fortalecimento dos seus complexos agroindustriais, busca garantir um abastecimento alimentar adequado, poder de barganha frente a outros países e o incremento das exportações. Para a Rússia, garantir a segurança alimentar é garantir legitimidade política no contexto doméstico e capacidade de constranger outras peças no tabuleiro internacional.

Desde o início da pandemia da Covid-19, os mercados de commodities, sobretudo os preços dos alimentos, têm se comportado de maneira irregular dado o desenrolar de uma recessão econômica global. A Rússia, buscando amenizar os efeitos da crise, procurou traçar alguns planos nesse contexto, mas não de forma tão incisiva como nos últimos meses. No dia 28 de janeiro de 2021, o Ministério da Economia (ME) estabeleceu um regime de tributação fixa sobre as exportações de cereais, sobretudo o trigo, o milho e a cevada. Decidiu-se que, entre 1º de março e 30 de junho do presente ano, seria aplicada uma taxa fixa de US$ 61 dólares por tonelada (t) de trigo exportada, bem como US$ 12 e US$ 30 para a cevada e o milho, respectivamente, como forma de amenizar os impactos da constante alta nos preços internos. 

Como se já não bastasse incerteza o suficiente, na semana seguinte o ME revoga o regime fixo e instaura o Decreto 117 em 6 de fevereiro, que será responsável pela introdução de um sistema de imposto flutuante para as exportações dos cereais mencionados acima, com data de início previsto para 2 de junho; estrategicamente antes do começo da próxima safra. A decisão tem gerado uma nuvem de dúvidas sobre o mercado global de commodities, já que a Rússia é um dos maiores produtores desses grãos, sobretudo o trigo, além de se destacar como um forte exportador. A revogação do regime fixo, entre outros fatores, se deu pela percepção de que, no alvorecer de fevereiro, os preços do trigo e do milho estavam, respectivamente, 25% e 50% mais altos se comparados ao mesmo período do ano anterior, antes da crise do coronavírus. 

Como funcionará? 

O sistema de imposto flutuante não incidirá sobre as exportações de trigo a um preço de até US$ 200 por tonelada. A sua aplicação se dará a partir da diferença de 70% entre o preço da exportação da semana anterior e o limite de US$200 por tonelada de trigo. Para as exportações de milho e cevada, os limites ficarão ambos situados em US$185 por tonelada. O ME será responsável por calcular esse imposto mensalmente, tendo por base os preços estabelecidos nos contratos de exportação registrados. Assim, o registro dos preços dos cereais deverá ser feito semanalmente na MICEX-RTS, a bolsa de valores de Moscou, com a garantia de que haverá penalidades aos que descumprirem o sistema.  

Tal medida causa desconforto ao mercado, tendo em vista que as perspectivas e garantias de lucro e retorno dos investimentos se tornam incertas, uma vez que, especialmente no ramo das commodities, as ações de compra e venda se dão por meio de contratos futuros. 

O que esperar? 

A Rússia, além de ser a maior exportadora global de trigo, encontra-se também entre os maiores produtores desse cereal, isso sem contar os outros cultivos. O Departamento de Agricultura dos EUA (USDA) estima, para a temporada 2020/21, um quantitativo de 39 milhões de toneladas exportadas pela Rússia, seguida por União Europeia e Canadá. Assim, essa medida protecionista lança o mercado internacional em mares incertos, já que tais grãos compõem parcela significativa da dieta global, podendo causar constrangimentos aos países dependentes de importações de tais cereais, a exemplo do Egito, que já chegou a rescindir contratos nas últimas semanas.

Ao restringir as exportações, espera-se que tanto o abastecimento interno seja mantido, como uma redução da tendência de alta dos preços internos seja alcançada. Essa medida, sem prazo de validade, diante de um sistema alimentar globalizado e demasiadamente entrelaçado, se comporta como mais um gatilho para o constrangimento de países dependentes de importação de tais alimentos, podendo elevar ainda mais os padrões de insegurança alimentar dos mesmos. 

 

*Graduando em Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Integrante do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB (FomeRI).

Edição: Cida Alves