é preciso utilizarmos das imagens que nos chegam para resistirmos a força que destrói o povo negro
Uma experiência histórica de solidariedade e resistência
Por Pedro Nicácio Souto*
Aprender com a experiência do passado pode retroalimentar a vivência dos sujeitos sociais que presentificam o nosso cotidiano. Essa é uma tarefa que exige conhecimento histórico aliado à prática social. Assim, os processos de dominação e de resistência que ocorreram durante a formação da sociedade paraibana nos ajudam a entender o que nos tornamos, mas também nos indicam os lugares que o povo negro e trabalhador tem ocupado ainda hoje.
A vida dos trabalhadores escravizados, libertos e livres entre os anos de 1860 e 1888 produziram diversos significados em seu tempo. A liberdade mesmo entre os sujeitos considerados “livres” era bastante nebulosa, naquele período. Desse modo, a barreira que separava efetivamente essas condições sociais distintas era bastante tênue, pois não era raro casos de reescravização. As experiências de trabalho e de vida cotidiana experimentada por esses agentes sugerem um compartilhamento de vivências com a ampla difusão da parceria, do compadrio e da solidariedade para ressignificar suas histórias e construir um mínimo de vida autônoma, a fim de minimizar as angústias passadas por grupos subalternizados que significaram o oitocentos.
Nesse sentido, esses atores sociais foram forjando imagens, visões de mundo sobre o processo de dominação sob o qual estavam inseridos. Por meio de muita solidariedade conseguiam romper com as agruras de uma sociedade alicerçada na dominação personalíssima de proprietários de terras do lugar, mas também de outros agentes que mesmo não sendo providos de muitas posses, estavam embriagados de uma mentalidade aristocrática que circulava. Entre condicionamentos e distensões, tais sujeitos cultivaram alternativas para a difícil tarefa de sobreviver num mundo hostil às camadas populares.
O cotidiano das classes trabalhadoras subalternas (LINDEN, 2013, p. 41) no século XIX não era de todo harmônico (havia muita contradição e lutas intergrupos de populares, inclusive entre os negros). Mesmo assim, ele revela diversas lutas contra o escravismo, tais como as fugas do cativeiro em que havia uma presença articulada de homens livres e escravizados a fim de obter a liberdade.
Entretanto, a visão de liberdade daqueles sujeitos nos parece possuir um significado mais amplo do que a “simples” fuga do cativeiro parece indicar. Para eles, ela poderia indicar formas alternativas de trabalho e o uso de terras que as posturas municipais (leis instituídas que regulamentavam o bem viver dos munícipes em cada município paraibano) impediam o acesso aos trabalhadores subalternos.
Em 1872, a população paraibana era predominante formada por negros: 221.938 (59%), sendo 188.241 pardos e 33.697 pretos dos 376.226 habitantes. (RECENSEAMENTO, 1872). É esse grupo étnico que hegemonicamente alimentava de braços os mundos do trabalho na Paraíba e fomentou diversas lutas em busca de autonomia.
Se compararmos aqueles números com os apresentados pelo Censo de 2010, os dados apontam para uma enorme simetria: 58,4% são considerados negros na Paraíba ao fim da primeira década do século XXI. (CENSO, 2010). Não se pretende - anacronicamente - aproximar contextos distintos de afirmação racial, no entanto, fica explícita a nossa configuração social no que se refere a contribuição de homens e mulheres negros à constituição do povo paraibano no mundo do trabalho e em outros campos que constituem a experiência de tais sujeitos.
Através do trabalho dos homens e mulheres negros, de ontem e de hoje, que foi possível edificar cidades, casas, ruas, avenidas, templos religiosos e outros espaços que edificam a Paraíba. Foi possível construir diversos ambientes que muitas vezes segregam a participação de negros e negras que não se identificam com a utilização desses lugares por produzirem uma memória segregacionista.
O Teatro Minerva, edificado em 1859, localizado na cidade de Areia-PB, foi concluído a partir da força econômica da elite areiense e exemplifica esse cenário. Os senhores Joaquim da Silva e José Evaristo foram os responsáveis por articular a “Sociedade Recreio Dramático” a fim de angariar verbas no intuito de executarem a obra. Em torno de 60 famílias abastadas da localidade contribuíram à edificação com doações mensais no valor de 50 mil réis. Valores oriundos da exploração de trabalhadores escravizados e livres nos engenhos e em outras atividades laborais comuns ao Brejo. Porém, esse grande edifício da cultura, ainda hoje não é parte integrante da maioria do povo negro daquele espaço urbano, nos fazendo lembrar da máxima de um filósofo alemão, Walter Benjamin, que certa vez sentenciou: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (BENJAMIN, 1987, p. 225).
Diante disso, ele também nos indica que a “verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. (BENJAMIN, 1987, p. 224) Assim, é preciso utilizarmos das imagens que nos chegam - trazidas à lume pela história dos sujeitos “de baixo” (escravizados, livres pobres e trabalhadores subalternos) - para resistirmos a força que destrói o povo negro e trabalhador nos dias atuais. O passado serve como inspiração para ocuparmos espaços culturais negados e/ou vilipendiados por meio de uma sociedade excludente alicerçada num racismo estrutural que fora alimentado por uma ideia de abolição elitizada e um pós-abolição limitado.
Por tudo isso, o passado não deve ser visto como uma mera reminiscência no presente, mas como um aprendizado vivo e transformador, cujo direcionamento seja a luta incessante por igualdade social e racial. De modo especial, nesse momento, em que vivemos, talvez, a pior crise de saúde pública da história do Brasil - superlotação de UTIs, falta de vacinação ampla, ausência de auxílio justo para os mais vulneráveis, mais de 300 mil mortes levando ao extermínio famílias inteiras e a presença de um governo federal negacionista - o que afeta diretamente populações negras, historicamente postas à margem da sociedade. Precisamos ser mais solidários e empáticos com todas as questões raciais e sociais que enfrentamos hoje e que virão depois da pandemia. Essa, aliás, escancarou as desigualdades e, talvez, em virtude disso nos faltem dados empíricos para avaliarmos o seu impacto sobre as trabalhadoras e trabalhadores negros paraibanos. A solidariedade presente na conflagração de nossa paisagem histórica pode nos ajudar a superar mais esse desafio.
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. [Versão Digital]
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: ________. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. Prefacio: Jeanne Marie Gagnebin. 3. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222 - 232.
LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do Mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Tradução Patrícia de Queiroz Carvalho Zimbres. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 2013.
SOUTO, Pedro Nicácio. As últimas décadas da escravidão na Parahyba do Norte (1860-1910): escravizados, livres e o movimento abolicionista. 2021. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Sociais e História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.
*Doutor em História Social -USP
Edição: Heloisa de Sousa