Por Zênia Chaves Araújo de Melo*
A participação do Brasil na II Guerra Mundial ao lado dos países do campo democrático tornou inviável e contraproducente, do ponto de vista político, a manutenção da ditadura do Estado Novo (1937-1945). Assim, em 1946, o Brasil vivia a transição para um regime (quase) democrático, com eleições livres, imprensa sem censura, formação de partidos políticos de abrangência nacional e movimentos sociais atuantes. Ao mesmo tempo, no entanto, permanecia a legislação que decretava a ilegalidade das greves, mantinha o caráter corporativo nas relações trabalhistas e sindicais e a proibição do voto aos analfabetos (maioria da população à época). Em 1947, houve a decretação da ilegalidade do Partido Comunista Brasileiro, inaugurando a Guerra Fria no Brasil.
A volta das eleições, sob nova legislação, levou a uma reorganização das oligarquias paraibanas quando da criação dos novos partidos políticos, em especial, a União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Social Democrático (PSD). O último interventor - Ruy Carneiro (1940-1945) - e seu grupo político fundaram o PSD, que incluiu, principalmente, funcionários públicos, mas contou com muitos chefes de oligarquias que haviam sido afastados do poder por Argemiro de Figueiredo (1935-1940). A oposição, representada principalmente por José Américo de Almeida e Argemiro de Figueiredo, se alojou na UDN, com esses dois líderes disputando o controle interno do partido, cujas representações municipais se constituíram de antigas oligarquias familiares como, por exemplo, os Ribeiro Coutinho na Várzea, os Maroja em Itabaiana, os Mariz Maia em Catolé do Rocha, e os Gadelha em Sousa.
Assim, na Paraíba, a disputa política maior passava a se dar entre as oligarquias agrupadas no PSD e aquelas fundadoras e participantes da UDN, a qual contava com nomes como Flávio Ribeiro Coutinho, Virgínio Veloso Borges, Renato Ribeiro Coutinho, José Targino e João Agripino Filho, dentre outros. Flávio presidiu o partido, em nível estadual, desde sua fundação até seu afastamento da política em 1958 (por questões de saúde) e a UDN logo passou a ser o partido de maior capilaridade e maior poder político. Outros partidos, como o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB) não tiveram, de início, grande força eleitoral. Posteriormente, a UDN teve dissidências internas, como o Partido Libertador (PL), mas elas não se constituíram em novos polos de poder.
Os Ribeiro Coutinho e os Veloso Borges participaram ativamente das discussões e articulações políticas desse período, como no chamado Acordo da Várzea, que decidiu quem seria o candidato pela UDN ao governo do estado na eleição de 1947. Outra importante participação da família Ribeiro Coutinho se deu na elaboração da Constituição Estadual, cujos trabalhos ocorreram entre 6 de março e 11 de junho de 1947, na qual Flávio e Renato atuaram, respectivamente, como presidente e primeiro secretário. Na legislatura normal (1947-1950), Flávio continuou como presidente da Casa até 1948 e Renato Ribeiro Coutinho assumiu a Comissão de Produção, Estatística, Viação e Obras Públicas. Na disputa para governador em 1955, Flávio foi o nome escolhido por unanimidade para unificar todos os partidos e oligarquias estaduais, tendo sido eleito com um percentual de 90,35% dos votos.
Dessa forma, a partir de 1947, vamos presenciar uma efervescente participação dos Ribeiro Coutinho e dos Veloso Borges nos processos eleitorais até o fim do período aqui abordado. Praticamente, todos os homens adultos daquela geração dessas famílias se candidataram e exerceram algum cargo executivo municipal ou estadual e/ou legislativo estadual ou federal. Para exemplificarmos a intensidade e frequência da participação dessas famílias nas disputas políticas eleitorais, sistematizamos, no quadro a seguir, alguns nomes, cargos disputados, datas de eleições e resultado.
Os municípios acima citados foram selecionados por serem reconhecidos como centros de importância política/econômica: Pilar (base política dos Veloso Borges), Sapé (centro das Ligas Camponesas) e Santa Rita (sede da maior parte das usinas dos Ribeiro Coutinho e da fábrica Tibirí, dos Veloso Borges). Porém o controle político estendia-se para outros da região.
Em 1947, a família Ribeiro Coutinho fundou e presidiu o Banco do Comércio e Indústria da Paraíba. Enquanto o tio Flávio governava o Estado (1956-1958) e seus parentes ocupavam os mais diversos cargos políticos, Renato Ribeiro Coutinho, além das atividades parlamentares e empresariais (diretor-presidente da Companhia Agroindustrial Santa Helena, da Companhia Agropecuária Gendiroba e das Indústrias Reunidas da Paraíba), era extremamente ativo em organizações da sociedade civil: membro do conselho fiscal da Confederação Nacional do Comércio, presidente da Associação Comercial e da Federação do Comércio da Paraíba, presidente das seções locais do Serviço Social do Comércio (SESC) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC). Além disso, foi diretor-presidente da Rádio Arapuã em João Pessoa, vice-presidente da seção paraibana da Legião Brasileira de Assistência (LBA) e fez parte da diretoria do Clube Astréa.
Pelas suas excelentes relações junto às representações do Exército Brasileiro na Paraíba, especialmente do 15º Regimento de Infantaria (15º RI), onde dispunha de um stand para praticar tiro ao alvo, Renato Ribeiro Coutinho recebeu a medalha do Pacificador, origem do seu título de Comendador. Tamanho era seu prestígio que, em um dos seus aniversários, os oficiais e a banda marcial do 15º RI se postaram diante da sua residência às cinco horas da manhã para tocar e cantar “Parabéns pra você”. Também não era rara a realização de festas em homenagem a oficiais das forças armadas na sede da Usina São João, como um almoço oferecido ao general José Sinval Lindemberg, relatado pelo jornalista Biu Ramos, presente na ocasião.
Essas mesmas usinas, palcos de festas, também presenciavam relações de trabalho das mais coercitivas, violentas e arcaicas. Vivendo nas terras do latifúndio na condição de “moradores”, os trabalhadores não possuíam nenhuma proteção trabalhista, social e previdenciária, não tinham acesso à moradia, à saúde, à educação, à propriedade da terra, ao direito de associação em sindicatos. Sua permanência nas terras era pautada pelo capricho dos usineiros e/ou pelo “bom comportamento”, o que significava votar nos candidatos do latifúndio e submeter-se a uma série de exigências, conforme já citado na parte II desse Dossiê.
Há registros de instrumentos de tortura como o cabocó (tanques com água onde o trabalhador era mergulhado até a altura da boca, lá permanecendo por dias) e cárcere privado. A interferência dos usineiros nas eleições das associações era constante e ameaçadora. Era frequente e comum a expulsão de famílias inteiras com derrubada de seus casebres, além de espancamentos e confisco das carteiras de trabalho (CTPS) e de associados das Ligas. Há relatos de fogueiras dessas carteiras em frente às casas grandes.
Em que pese esse período ser conhecido como a era do populismo, a adoção de práticas populistas, por parte dos usineiros, era pífia e contraditória com as violências praticadas e com a recusa dos latifundiários de abrirem seus “feudos” às novas legislações, situação na qual eles deixariam de ser os detentores absolutos do controle sobre os trabalhadores. O ano de 1958, fim do nosso período, presencia a fundação da primeira Liga Camponesa, em Sapé, por João Pedro Teixeira, e a saída da política de Flávio Ribeiro Coutinho, vítima de um acidente vascular cerebral. Sucede-o nos negócios e na política, seu sobrinho Renato, dito Comendador.
Do ponto de vista da disputa pela permanência no controle do estado e de seus recursos, e se considerarmos que, a essa transição, só sobreviveram as oligarquias que souberam se adaptar às novas exigências políticas e eleitorais, podemos afirmar que o Grupo da Várzea foi um desses grupos vencedores. A sobrevivência se deu pela conjugação, por vários anos, das práticas de coerção e violência remanescentes do coronelismo com as novas atividades políticas de fundação e controle de partidos, intensa participação parlamentar, manutenção do controle dos municípios da região da várzea do Rio Paraíba, ocupação de cargos na máquina estatal, obviamente amparados pela preservação e ampliação do poderio econômico e financeiro do Grupo. O confronto com as Ligas Camponesas, embaladas pelos ventos democráticos do período, explodiu no início dos anos 1960, como veremos na próxima e última parte desse Dossiê.
*Bancária aposentada, ex-dirigente sindical, bacharelada em Sociologia e Ciência Política pela UFRN e licenciada em História pela UFPB. Atualmente é aluna do Programa de Pós Graduação em História da UFPB (PPGH/UFPB).
Edição: Cida Alves