Pessoas com fome normalmente optam pelos produtos baratos e com baixo valor nutricional
Por Ellen Maria Oliveira Chaves*
Pagar as contas ou se alimentar? Diariamente, famílias de baixa renda ao redor do mundo lidam com essas escolhas ao se depararem com seus custos de vida. O constante “abre e fecha” de vários setores da economia provocado pelas medidas erráticas de contenção da Covid-19 foi responsável pela recessão econômica, aumento do desemprego e da pobreza tanto em economias dependentes como nas desenvolvidas.
A postura adotada pelas lideranças fez diferença no combate ao vírus. No Brasil, observaram-se a falta de alinhamento com as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e a omissão em assegurar direitos essenciais, como o direito à alimentação. A alta nos preços dos alimentos acentuou a insegurança alimentar e as mudanças nos hábitos alimentares, principalmente nas famílias com crianças e adolescentes. Pessoas com fome normalmente optam pelos produtos baratos e com baixo valor nutricional.
Diante disso, a escolha por alimentos calóricos e industrializados potencializa o aparecimento de várias doenças e agrava a epidemia de obesidade. A falta de alimentos suficientes para viver de forma ativa e saudável cria uma crise de insegurança alimentar que tem a capacidade de afetar o futuro de uma nação: as crianças.
A influência dos aplicativos e das mídias sociais impulsionou grandes mudanças nas relações de trabalho, principalmente devidas ao aumento da informalidade. As tentativas de lockdown nas capitais brasileiras prejudicaram a economia e os empregos, mas a pandemia apenas trouxe à superfície a desigualdade social enfrentada pelos mais vulneráveis.
O Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia divulgou uma pesquisa no início do mês, avaliando o impacto da Covid-19 na segurança alimentar. Cerca de 126 milhões de brasileiros tiveram acesso limitado ou não tiveram acesso à alimentação adequada para se nutrir. Representam cerca de 60% da população brasileira. Inclusive, as casas com crianças de até 4 anos foram as mais afetadas. Superando a média nacional, cerca de 71% destas famílias enfrentaram algum grau de insegurança alimentar desde a chegada do vírus.
Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), 67% das famílias brasileiras com renda de até 1 salário mínimo tiveram redução na renda. Evidenciando questões de gênero e raça, as famílias administradas por mulheres pretas e pobres foram as mais atingidas. A UNICEF ainda divulgou que 59% dos lares brasileiros onde residem crianças apresentaram mudanças nos hábitos alimentares, em comparação aos 54% de domicílios onde elas não estão presentes. Também se observou o aumento no consumo de alimentos industrializados nessas residências, tanto nos lares com crianças (36%), como nos lares sem a presença delas (24%).
O fechamento das escolas teve impacto direto nesses números. O repasse do benefício referente à alimentação dos estudantes das escolas públicas foi insatisfatório. 58% das casas com crianças matriculadas na rede pública com renda familiar de até um salário mínimo, as mais vulneráveis, não chegaram a receber a quantia.
A pandemia pode ter impulsionado esse cenário. No entanto, a mudança de hábitos alimentares cresce desde muito antes. Existimos, hoje, dentro de um sistema alimentar perverso que nos faz acreditar que temos a escolha do que comemos. Contudo, temos autonomia limitada nas escolhas alimentares, já que esse padrão de consumo é lucrativo para as grandes empresas. Os industrializados são comercializados como produtos baratos, cheios de aditivos e açúcar. Com o objetivo de viciar o paladar, principalmente das crianças e adolescentes, e aliado a massivas campanhas de marketing, o sistema impulsiona a acumulação de capital às custas da saúde humana.
Nesse cenário, a potência norte-americana se destaca. Ao mesmo tempo em que os Estados Unidos possuem empresas protagonistas dominando os mercados, são conhecidos como uma das nações mais obesas do mundo, sofrendo diretamente os impactos da insegurança alimentar.
Expondo vulnerabilidades até mesmo dos países desenvolvidos, a proliferação do novo coronavírus, no último ano, afetou de forma semelhante os Estados Unidos. Enquanto o país tenta superar as consequências econômicas da pandemia, a insegurança alimentar persiste e as crianças absorvem os maiores impactos. Perdendo o acesso à alimentação escolar, milhares de famílias buscaram refúgio nos bancos de alimentos. Devido à demanda inédita nos bancos, foram distribuídas cerca de 6 bilhões de refeições em 2020, superando em 2 bilhões o ano anterior.
Estimativas da instituição Feeding América mostram que 45 milhões de norte-americanos enfrentaram insegurança alimentar no ano de 2020, 1 em 7 pessoas, das quais 15 milhões eram crianças (1 em cada 5). Aliado ao padrão de consumo de industrializados, a obesidade se manifesta como uma faceta da insegurança alimentar, que também afeta com maior intensidade a população infantil. Nos últimos 30 anos, a obesidade aumentou 70% nos adultos e 85% nas crianças norte-americanas. Obesidade e desnutrição, aspectos desumanos da fome que se manifestam por causa do acesso irregular à alimentação.
Os dados evidenciam um contexto de má nutrição. A insegurança alimentar pode causar desnutrição e deficiência nutricional, bem como danos à capacidade das crianças de aprender e desenvolver. Por isso, crianças com fome são severamente afetadas, principalmente nos primeiros anos de vida. São mais propensas a ter deficiências no desenvolvimento da fala, das habilidades motoras e de interação social, podendo também desenvolver problemas de saúde como asma e anemia.
Da mesma forma, o consumo de alimentos pouco nutritivos e industrializados podem causar doenças crônicas não transmissíveis, por exemplo, diabetes tipo 2, doenças cardíacas e obesidade, aumentando a sobrecarga nos sistemas de saúde.
A vulnerabilidade enfrentada pelas crianças é um sinal de enfraquecimento no poder dos Estados. A fome causa danos que podem afetar uma vida toda e, ainda, serem transmitidas às gerações futuras. Uma população alimentada de forma nutritiva é uma nação forte. Assim, pelo bem das sociedades, as contradições em relação ao ato de comer e às dinâmicas do sistema agroalimentar e das estruturas de combate à insegurança alimentar precisam ser repensadas.
*Membro/Integrante do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (fomeri.org) da UFPB
Edição: Cida Alves