Se tem gente com fome, dá de comer!
A parábola do bom samaritano é muito conhecida e especialmente útil em tempos de pandemia. Lê-se em Lucas 10: 30-37:
Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos de assaltantes. Estes lhe tiraram as roupas, espancaram-no e se foram, deixando-o quase morto. Aconteceu estar descendo pela mesma estrada um sacerdote. Quando viu o homem, passou pelo outro lado. E assim também um levita; quando chegou ao lugar e o viu, passou pelo outro lado. Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele. Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte, deu dois denários ao hospedeiro e lhe disse: 'Cuide dele. Quando eu voltar, pagarei todas as despesas que você tiver'. Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?" "Aquele que teve misericórdia dele", respondeu o perito na lei. Jesus lhe disse: "Vá e faça o mesmo."
Nesta parábola, Jesus induz à conclusão de que o samaritano foi um exemplo de amor ao próximo, ao contrário dos dois outros homens que ignoraram o ferido. Normalmente, essa parábola é utilizada para ressaltar que o samaritano, mesmo sendo de um povo que nutria animosidade em relação aos judeus, ajudou o judeu debilitado. Entretanto, penso que esta estória pode ser útil para pensar sobre a doação de alimentos na pandemia também.
Muitos de nós, ao vermos tantas pessoas desamparadas nas ruas, temos doado alimentos com a expectativa de aliviar pelo menos um pouco, nem que seja por um turno do dia, o sofrimento delas. Certamente, essas doações são mais do que fizeram o sacerdote e o levita, os quais, na verdade, ignoraram completamente o necessitado na parábola. Este tipo de doação, portanto, é um passo na direção da caridade e da solidariedade.
Porém, reflitamos um pouco sobre o que fez o samaritano. Ele não apenas passou pelo desamparado e deixou dois denários, ou lhe entregou as coisas para os curativos e partiu. Esses atos, por si só, me parecem meritórios e não creio que devam ser desencorajados. Contudo, penso que a força da parábola está em que o samaritano dedicou mais tempo e energia para ajudar o próximo. E o que isso tem a ver com a doação de alimentos?
Sem qualquer pretensão de desencorajar a doação de comida a quem tem fome, gostaria de sugerir uma reflexão embasada em pesquisas sérias e em políticas de reconhecida eficiência internacional. Comecemos pela última.
Há cerca de 30 anos, os especialistas em ajuda alimentar humanitária entenderam que a doação de alimentos, mesmo que altruísta e bem-intencionada, é menos eficiente quando se leva aos necessitados comida produzida em regiões distantes das pessoas famintas. Há uma série de motivos para isso, mas o principal, neste contexto de pandemia, é que se perde uma oportunidade de usar a ajuda para movimentar a economia de modo que favoreça aos mais pobres.
Por exemplo: Quando havia muita fome no Nordeste, nos anos 1960, e os Estados Unidos enviaram trigo e milho produzido em seu território, na América do Norte, essa comida aliviava a fome dos nordestinos, mas não fazia girar a economia local e, por isso, não contribuía para a geração de renda e emprego naquelas regiões de pobreza. E a duração da fome está relacionada com a condição de pobreza. Por outro lado, se os Estados Unidos comprassem uma parte da comida (macaxeira, fava, arroz) a ser doada nos mercados locais, com o devido planejamento, então as compras adicionais poderiam estimular o comércio local e o aumento da produção, de modo que não houvesse maiores impactos na inflação também. Os alimentos seriam digeridos, mas o dinheiro que levou os alimentos às pessoas necessitadas continuaria circulando no seu entorno.
Além disso, o trigo não é um alimento típico do Nordeste, como é a macaxeira. Acontece que a doação de trigo contribuiu para que a população nordestina pegasse gosto pelo produto e, assim, se tornasse dependente de sua importação – seja do sul do Brasil, da Argentina ou dos Estados Unidos. E, quando o dólar aumenta, fica mais caro saciar esse gosto – ou seria vício? – básico pelo trigo na forma de pão, bolo, macarrão, etc.
Por isso, diversos países têm reformado suas políticas de ajuda alimentar internacional para, ao invés de enviar navios e caminhões de comida, enviarem dinheiro para que as compras sejam feitas nas regiões vulneráveis, ou então comprarem eles mesmos os alimentos naquelas regiões.
De modo similar, há também um crescente entendimento de que comprar a comida de grandes produtores ou de grandes comerciantes é desperdiçar o potencial de ajuda, mesmo que na região das pessoas necessitadas. É que está amplamente demonstrado que a renda obtida pelos grandes produtores de commodities agrícolas, ou pelas grandes redes de supermercado, não é tão redistribuída para a sociedade como quando se compra de pequenos produtores agrícolas ou de pequenos estabelecimentos comerciais.
Além disso, pesquisas em diversos países, ricos e pobres, demonstram claramente que as grandes redes de supermercado atuam como funis no sistema agroalimentar. Elas espremem os produtores agrícolas de modo a pagar a eles um preço muito baixo pelos seus produtos. Há um “palavrão” para designar isso: oligopsônio. O oligopsônio é um parente próximo do oligopólio, termo um pouco mais popular.
O oligopsônio acontece quando há poucos compradores dispostos a comprar um produto que é vendido por muitos fornecedores. Como os compradores são poucos e têm muito poder de compra, eles acabam se saindo melhor nas negociações com os muitos produtores porque, como há muita gente querendo vender, eles conseguem barganhar preços muito baixos. Depois, beneficiam esses produtos e levam-nos às prateleiras dos supermercados. Quando vendem ao consumidor, ficam com uma parte muito maior do lucro do conjunto das operações, aprofundando a desigualdade social.
Por outro lado, como são poucas as grandes redes de supermercado, elas podem atuar como oligopólios em algumas regiões. Um oligopólio acontece quando se tem muitos compradores e poucos vendedores. É o contrário do oligopsônio. Quer dizer, com milhões de consumidores de arroz, feijão e óleo de soja de um lado, e poucas redes de supermercado do outro, é muito difícil que os consumidores consigam fazer os vendedores baixarem os preços. É como se os consumidores precisassem mais dos vendedores do que o contrário, e isso deixa os consumidores com menor poder de negociação. Isso é assim no Brasil e em muitos países.
Entretanto, quando se compra direto de uma pequena produtora, por exemplo, não há intermediários e ela fica com uma parcela maior do lucro. Quando se compra de um pequeno comerciante, seu lucro tende a ser mais redistribuído em seu entorno, no seu bairro. Mas – você pode se perguntar – e os supermercados? Também não precisam vender para pagar suas contas e gerar empregos? Sim, precisam, mas o fato é que os supermercados estão tendo lucros extraordinários na pandemia, enquanto o pequeno comércio tem enfrentado mais dificuldades. Sem contar que os produtos da cesta básica que doamos a partir dos supermercados normalmente têm o arroz (que vem do sul ou do exterior), macarrão, bolachas e biscoitos (trigo do sul ou do exterior) e óleo de soja ou de milho (de grandes latifundiários).
Por isso, se possível, ao comprar alimentos para doação, tente fazê-lo direto de pequenos produtores ou de pequenos comerciantes que estejam localizados nas proximidades das populações a serem assistidas. Alimentos como feijão verde, arroz da terra, macaxeira, inhame, cará, amendoim e uma rapadurinha, para dar aquela alegria, têm mais chances de serem produzidos no Nordeste. Dá mais trabalho, pode exigir mais do seu tempo, a logística pode ser mais difícil, mas isso – penso eu – coloca a sua ajuda mais próxima da do bom samaritano.
Repito: que isso não seja desincentivo a quem possa doar da maneira convencional. Mas as pesquisas e a boa prática internacional apontam que investir um pouco mais de tempo e de planejamento pode multiplicar os benefícios da sua ação solidária e dos seus denários.
Se tem gente com fome, dá de comer!
Thiago Lima é coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB.
www.fomeri.org.
Instagram: @fomeri_ufpb
Edição: Cida Alves