Desde ontem à noite, o Brasil assiste a uma intensa polêmica nos meios de comunicação e nas redes sociais sobre a decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de negar a autorização de uso emergencial à vacina Sputnik V. A reunião durou mais de cinco horas e está disponível no Youtube, bem como estão na internet as apresentações organizadas pelo corpo técnico da agência (aqui e aqui).
Não pretendo, aqui, detalhar as razões da Anvisa para negar a importação da Sputnik V, que já foram muito bem sintetizadas no portal Outra Saúde. Mas tão somente tentar “limpar o meio de campo” diante de um cenário de polarizações, desinformação, fake news, guerra comercial, lobby e descalabro sanitário, para que o debate não perca de vista a dimensão científica que deve embasá-lo. Isso é tanto mais necessário quanto até profissionais da saúde encontram dificuldades em compreender o conteúdo e o contexto da polêmica. E tanto mais preciso quanto, no seio da esquerda e das oposições ao governo Bolsonaro, a decisão de ontem gera divergências.
De partida, afirmo que, nesse debate, toda precaução é importante, tanto para com os argumentos a favor, como para os argumentos contra a liberação. Que há uma guerra comercial e uma geopolítica da vacina, qualquer um percebe. Nesse âmbito, ações de espionagem industrial e de contraespionagem estão presentes e nublam o debate científico. Por isso, como médico e como pesquisador, creio que é preciso dar atenção a essas questões técnicas.
Para tanto, é preciso entender um pouco melhor o processo de pesquisa e desenvolvimento de vacinas. A esse respeito e sobre a tecnologia, a eficácia e a segurança das vacinas autorizadas no Brasil (Coronavac e Oxford/AstraZeneca), recomendo dois textos que escrevi em fevereiro (aqui e aqui).
Enquanto a Coronavac utiliza, como plataforma tecnológica, o coronavírus inativo (morto, numa linguagem popular), tanto a vacina da Oxford/AstraZeneca quanto a Sputnik V usam a plataforma de vetor não-replicante: utiliza-se um vírus distinto do SARS-CoV-2 e incapaz de se multiplicar no organismo humano para que funcione como vetor, ou seja, modificado geneticamente para expressar a proteína S do coronavírus, que é o alvo imune pretendido.
No caso da vacina de Oxford, o vetor é um adenovírus que infecta chimpanzés (portanto, incapaz de se multiplicar em humanos). Esse vetor viral de adenovírus tem, em sua superfície, por engenharia genética, a proteína S do SARS-CoV-2, estimulando o sistema imune a produzir anticorpos contra ela. Assim, se a pessoa for exposta ao coronavírus, a pessoa já terá a defesa contra a proteína viral responsável pela infecção.
Os mesmos princípios também são aplicados no desenvolvimento da vacina russa. Ela usa dois vetores de adenovírus humano não-replicantes que expressam a proteína S: uma dose inicial do vetor adenovírus 26, seguida por uma dose de reforço do vetor adenovírus 5 após 28 dias. Tanto o adenovírus 26 quanto o 5 são vírus que circulam entre seres humanos, mas, no caso da vacina, são alterados de modo a evitar que se repliquem.
É importante destacar que a Sputnik V teve sua eficácia comprovada em ensaio clínico de fase I/II publicado numa das revistas científicas mais renomadas, The Lancet, em setembro de 2020. E, em ensaio clínico de fase III, que incluiu mais de 20.000 participantes sem infecção prévia por SARS-CoV-2, esta vacina teve 91,6% de eficácia na prevenção de Covid-19 sintomática a partir de 21 dias após a 1ª dose. Foram 78 casos da doença: 16 entre os 14.964 participantes que receberam a vacina, e 62 entre 4.902 participantes que receberam placebo. Todos os 20 casos de Covid-19 grave que ocorreram 21 dias após a primeira dose estavam no grupo que recebeu placebo. O tempo médio de acompanhamento foi de 48 dias após a primeira dose. Reações locais e sistêmicas semelhantes à gripe foram mais comuns no grupo da vacina, com taxas de 15 e 5%, respectivamente. Nenhum evento adverso sério foi considerado relacionado à vacina.
No entanto, em relação ao parecer da Anvisa, para além das dificuldades de acesso a informações (certamente relacionadas a esse contexto de espionagem e contraespionagem), a questão principal é que, numa vacina cuja plataforma é de vetor não-replicante, foi identificada a possibilidade de replicação do vírus. E, diferente do vetor usado na vacina Oxford/AstraZeneca, os vetores da vacina russa (adenovírus 5 e 26) são, originalmente, adaptados a circular em humanos. Se isso realmente for comprovado, é algo gravíssimo, pois não se conhecem os riscos implicados na replicação de um vírus humano geneticamente modificado.
Destaco que há plataformas vacinais que utilizam, sim, vetor replicante. Todavia, esses vetores são derivados de cepas de vírus atenuadas. Ou seja, são vetores que foram produzidos pelo desenvolvimento de versões geneticamente modificadas do vírus de tipo selvagem ou cultivando-o em condições adversas, de modo que a virulência (capacidade de provocar danos) desse vetor viral seja perdida, mas a imunogenicidade (capacidade de gerar resposta imune na pessoa infectada) seja mantida.
Esses vírus enfraquecidos e que expressam a proteína S do SARS-CoV-2 se replicam no receptor para gerar uma resposta imune, mas não causam doenças. Os protótipos em teste dessa tecnologia utilizam, como vetores, cepas de vírus atenuado do sarampo, vírus da influenza, vírus da estomatite vesicular (VSV) e vírus da doença de Newcastle (NDV), mas ainda estão em fase inicial de ensaios clínicos. Acontece que essa tecnologia não é a utilizada pela vacina russa: os seus vetores (os adenovírus humanos 5 e 26) não são atenuados e, portanto, sua replicação poderia gerar consequências danosas, já que eles, em tese, preservariam sua virulência.
Porém, pode-se argumentar que agências reguladoras de outros países autorizaram a importação e distribuição da Sputnik V. Isso pode ser um argumento forte a favor da autorização, a qual foi concedida nesses países certamente por não se ter verificado a replicação dos vetores virais. Daí porque a decisão da Anvisa tem relevância internacional, como argumenta Reinaldo Azevedo acertadamente. Vão ser necessárias novas avaliações e é possível que, confirmado tal achado, esses outros países revejam seus protocolos. Caso contrário, ficará constatado um erro ou, pior, uma farsa, rebaixando a credibilidade do Brasil no cenário mundial ainda mais.
Frente à incerteza, a postura mais coerente é a de se manter aberto: ciência se faz com dúvida, não com convicção. Se o Instituto Gamaleya (que desenvolveu a Sputnik V) ou a Pfizer (que também tem pendências junto à Anvisa e, por isso, ainda não teve sua vacina liberada) não conseguem minimizar as dúvidas quanto aos seus imunizantes por se recusarem a abrir seu processo produtivo, nossa agência reguladora não pode ser complacente e subserviente.
O pior cenário possível num contexto de incertezas e de descredibilizacão das instituições, promovida pelo obscurantismo neofascista do bolsonarismo, é desautorizar a Anvisa. As consequências de um precedente desse tamanho são enormes. Imaginem a quantidade de produtos relacionados à saúde humana cujos produtores poderiam driblar a posição da agência por via judicial a partir desse evento.
Quer dizer que a Anvisa é um agência neutra politicamente? Óbvio que não. Qualquer neófito sabe disso. Basta ver a sucessivas aprovações de uso de agrotóxicos (um recorde após o outro nos últimos anos), muitos deles proibidos em outros países. É mais do que evidente que a Anvisa é permeável ao lobby. Mas há nela um corpo técnico com profissionais muito qualificados. Eles podem errar, é verdade. Pode ser que alguns deles ajam de má-fé. Todavia, isso teria de ser demonstrado, confrontando as evidências disponíveis com as que foram levantadas pela agência. Por isso, cautela é a melhor posição a se adotar.
Torço para que as questões trazidas sejam esclarecidas e o produto seja autorizado. Mas, até lá, prefiro me guiar pela dúvida. Tão perigoso quanto a ingenuidade frente ao mito da neutralidade axiológica da ciência é a sobrepolitização da mesma, que lhe recusa seu espaço de autonomia relativa. Basta ver, pelo lado de lá da luta politica, o debate sobre a cloroquina e o tal tratamento precoce. Do lado de cá, não seria prudente adotarmos uma posição sobrepolitizante frente a uma dúvida dessa magnitude: a possibilidade de replicação de um vetor que, supostamente, seria não-replicante.
Essa cautela é o posicionamento que pessoas de renome e de claro compromisso ético no combate à pandemia e ao descaso do governo federal têm adotado, como o pesquisador Miguel Nicolelis. Ele tem alertado que, se nos afastarmos da arena científica, podemos ficar reféns, no futuro, de nossa ânsia, caso se comprove o questionamento da Anvisa. Se for demonstrado, por outro lado, que a decisão da Anvisa se sustenta em uma farsa montada para atender aos interesses políticos de Bolsonaro, a oposição terá mais uma prova robusta de sua ação genocida.
Uma palavra acerca da disputa política em torno da autorização emergencial da Sputnik V: além dos governadores de oposição, agentes políticos da base bolsonarista também têm pressionado pela aprovação da vacina russa. Alguns deles porque mantêm relação com o laboratório brasileiro com que o Instituto Gamaleya fará a parceria para a produção. Outros porque estão pressionados pela Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga a responsabilidade do governo federal na pandemia, fator que, junto com a reabilitação política de Lula, empurrou Bolsonaro a abandonar o discurso anti-vacina. E outros, ainda, porque miram as eleições de 2022, quando o possível concorrente João Dória deverá construir sua narrativa a partir dos méritos do Instituto Butantã no desenvolvimento da Coronavac; ou seja, Bolsonaro teria que apresentar “sua vacina” e disputaria os louros da Sputnik V com os governadores.
Em síntese, sem desconsiderar que a vacina russa já é usada em mais de 60 países (Argentina e México, por exemplo), que há uma campanha imperialista estadunidense aberta contra sua compra, que há uma tentativa explícita de aparelhamento da Anvisa pelo governo Bolsonaro, e, por fim, que a agência é permeável ao lobby, com amplo histórico de aprovação de agrotóxicos proibidos no resto do mundo, o mais sensato é assumir uma posição de precaução. A ausência de padronização na produção da vacina e o grave achado de que o vetor viral, que não deveria se replicar, poderia fazê-lo, exigem prudência até que mais informações sejam disponibilizadas.
Além disso, garantir a autoridade da Anvisa é um elemento importante de soberania nacional. A decisão de liberar o uso de vacinas considerando a autorização pelas agências europeia e estadunidense, driblando a Anvisa, como determinou o ministro da suprema corte Ricardo Lewandowski, é, em última análise, um ato de subserviência, ainda que motivado por boas intenções e pelo desespero. Nossa luta deve ser para que a agência seja blindada de interferência governamental, para que sua autonomia científica seja preservada. Como se diz no meio popular, “não se pode jogar fora a água da bacia com a criança junto.”
Sem em nenhum momento perder de vista a urgência da luta pela sobrevivência de nosso povo contra as ações e omissões do governo federal, nem os conflitos geopolíticos envolvidos, nessa polêmica, especificamente, é melhor fazer “como um velho marinheiro, que, durante o nevoeiro, leva o barco devagar”, como nos recomenda Paulinho da Viola.
Henrique Medeiros é médico de família e comunidade e doutorando na Fiocruz-PE.
Edição: Cida Alves