A escassez de informações sobre essa população não permite comparar dados de insegurança alimentar
Por Luciana Maria Pereira de Sousa*
Os resultados divulgados, em abril, pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), através do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, revelaram um aumento devastador da fome e da insegurança alimentar e nutricional.
A fome retornou aos níveis de 2004 numa escala ascendente desde 2015, que se agravou, principalmente, nos últimos dois anos, incluindo o cenário pandêmico, no qual a insegurança alimentar grave aumentou de 10,3 milhões para 19,1 milhões de pessoas.
A situação da insegurança alimentar e da fome se agrava ainda mais entre mulheres, pessoas negras, pessoas com baixa escolaridade e pessoas desempregadas. Os dados mais atuais são comparados com resultados de outras pesquisas importantes, a saber: a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD) referente aos anos de 2003-2004 e 2008-2009, e a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) referente a 2017-2018, ambas organizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE).
O que essas pesquisas têm em comum?
Essas pesquisas referem a insegurança alimentar em nível domiciliar. Ou seja, têm em comum o fato de que as pessoas que respondem à pesquisa são aquelas capazes de fornecer informação sobre o domicílio e seus moradores e moradoras.
Para levantar essas informações, o Brasil passou a utilizar, desde 2004, questionários que incluem a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA). Baseada na Medida da Escala de Segurança Alimentar Domiciliar dos Estados Unidos, a EBIA foi adaptada à realidade brasileira e validada, definindo critérios para classificar a situação dos domicílios como em segurança alimentar ou em insegurança alimentar leve, moderada ou grave.
Dessa forma, a insegurança alimentar é definida quando existe restrição alimentar, ou seja, quando as pessoas não têm, em diferentes níveis, acesso permanente a alimentos. E a fome, a expressão mais cruel e trágica, é o nível mais grave de insegurança alimentar.
A partir de 2014, é utilizada uma versão reduzida da EBIA, com questões relacionadas ao acesso à alimentação nos três meses anteriores à data da entrevista. Dessa forma, os moradores e moradoras respondem se, nos últimos três meses, houve a preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar ou receber mais comida, ou antes que tivessem dinheiro para comprar mais comida; se os moradores e moradoras do domicílio ficaram sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada; se comeram apenas alguns poucos tipos de alimentos que ainda tinham porque o dinheiro acabara; se algum(a) morador(a) de 18 anos ou mais de idade deixou de fazer alguma refeição, comeu menos do que achou que devia, sentiu fome mas não comeu, fez apenas uma refeição ao dia ou ficou um dia inteiro sem comer porque não havia dinheiro para comprar comida.
Em resumo, é mensurada a percepção em relação ao acesso aos alimentos pelos moradores dos domicílios.
Por que chamar a atenção para as pesquisas por domicílio?
Porque essas pesquisas têm grande impacto no monitoramento da segurança alimentar da população, porém têm uma limitação preocupante: elas não alcançam uma parcela da população de mais alta vulnerabilidade e que não se encontra em domicílios, a exemplo da população em situação de rua.
Isso quer dizer que há, ainda, uma grande parcela da população não incluída nos estudos sobre a fome. E os resultados alarmantes do aumento da fome no Brasil podem ser ainda mais assustadores e representar um cenário muito pior se observados com dados da percepção e experiência com a fome em populações em situações de maior vulnerabilidade.
É visível o aumento da fome nas ruas. As pessoas estão ocupando as ruas para tentar sobreviver. São pessoas que não têm moradia e tentam sobreviver nas ruas e pessoas que têm moradia, mas não têm o que comer e são obrigadas a saírem de suas casas e disputar alimentos com a população em situação de rua.
É comum ver o aumento de famílias pedindo doação no trânsito e nas casas, pessoas que estão sozinhas e, ainda, quem divide os dias difíceis e o pouco que recebe com um animalzinho de estimação. Essa fome está sendo computada nas pesquisas? Não.
E o que se sabe sobre um aumento expressivo da população em situação de rua?
Muito pouco! Atualmente não existe um censo nacional para saber o quantitativo nem conhecer quem são essas pessoas. O que há são estimativas realizadas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a mais recente publicada em junho de 2020, que apresenta um cálculo da população em situação de rua no Brasil no período de setembro de 2012 a março de 2020.
Em março de 2020 o número estimado de pessoas em situação de rua no Brasil era de 221.869, o que representa um aumento de 140% quando comparado à estimativa em setembro de 2012, que correspondia a 92.515 pessoas em situação de rua no país. É importante destacar que esse número não conta com o período do agravamento da pandemia, já que a estimativa foi realizada até março de 2020, quando, no Brasil, eram confirmados os primeiros casos de Covid-19, enquanto o país ultrapassa mais de 400 mil mortes pela doença hoje.
É necessário levar em consideração que a contagem dessas pessoas é mais difícil de ser realizada, porque há diversas formas de ocupação. A contagem é diferente em pessoas domiciliadas. Essa dificuldade pode significar um dado subestimado ou inferior ao real tamanho da população em situação de rua.
Além disso, também não há informações de quem são essas pessoas e por qual motivo elas estão em condição de rua. O que estudos em diferentes cidades mostram é que o crescimento dessa população é observado em todas as regiões e que as pessoas estão em situação de rua por diversas razões, como conflitos e vínculos familiares interrompidos, mas, principalmente, pelo aumento do desemprego e da extrema pobreza, os quais são fatores que estão relacionados com a insegurança alimentar e a fome.
Em outras palavras, não se sabe quase nada sobre a fome da população em situação de rua no Brasil. A escassez de informações sobre essa população não permite comparar dados de insegurança alimentar numa série histórica, ou seja, com dados oficiais de diferentes anos, como acontece com pessoas domiciliadas. O que dificulta, ainda mais, a inclusão adequada dessa população nas ações e políticas públicas, nos planejamentos e monitoramentos necessários para garantia de direitos, entre eles o direito à alimentação.
Por exemplo: se não há registros de anos anteriores à pandemia, não é possível dimensionar o real aumento dessa população em situação de rua e da fome presente nela. Tampouco é possível quantificar ações suficientes para alcançar toda essa população e garantir a segurança alimentar.
E não para por aqui!
Para levantar informações sobre a fome da população em situação de rua no Brasil é necessário investimento público para a realização das pesquisas. E não é isso o que vem acontecendo no país. Existe um aumento da precarização da educação, redução de investimentos, cortes de bolsas de estudo nas universidades, impedindo a realização de pesquisas, enfraquecimento das instituições de fomento ao desenvolvimento científico, até mesmo perseguição à comunidade científica.
Como se não bastasse tal cenário, em vez de fortalecer as pesquisas e incluir a população em situação de rua, historicamente invisível nos dados oficiais, mais um retrocesso foi anunciado, em abril deste ano, pelo governo federal: o corte de 96% no orçamento para a realização do Censo 2021.
A inviabilidade de realizar o Censo significa não fornecer um conjunto de informações para ajudar a compreender as características da população, observar a atual realidade demográfica, social e habitacional e apontar necessidades que são a base para o planejamento e avaliação das ações das políticas públicas no país. Ou seja, enquanto reivindica-se a inclusão da população em situação de rua no Censo e defende-se a importância dos dados, mais uma vez é anunciado corte orçamentário que impede conhecer com mais profundidade a realidade brasileira.
A notícia da não realização do Censo 2021 gerou uma grande repercussão e reivindicação das entidades representativas, organizações e movimentos sociais que atuam em defesa da continuidade e ampliação de investimento para realização de pesquisas e condições para formulação e avaliação de políticas públicas. Com isto, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o governo federal adote medidas para a realização do Censo em cumprimento ao dever de organizar e manter os serviços oficiais de estatística e geografia de alcance nacional, de acordo com a Constituição Federal.
E agora? O que se espera?
Somos pessoas com direitos. Não somos aquelas pessoas que antes nos diziam que um cobertor e um pratinho de sopa era suficiente (Maria Lúcia Pereira da Silva**)
A lista é grande porque a dignidade humana e os direitos estão sendo cruelmente violados. Espera-se olhar para fome e espera-se um censo incluindo a população em situação de rua, planejado com a participação do Movimento Nacional de População de Rua e com a construção de um banco de dados sobre essa população para conhecer melhor a magnitude dos problemas e direcionar ações e políticas públicas específicas.
Espera-se levar em consideração o aumento da fome no país e ampliar o quantitativo de pessoas beneficiárias nos programas sociais, bem como ampliar a oferta de programas que contemplem a população em situação de rua, a exemplo dos restaurantes populares.
Espera-se garantir acesso à agua potável para pessoas em vulnerabilidade e pontos de higienização e lavagem de roupas.
Espera-se considerar o aumento estimado da população em situação de rua, potencialmente agravado com a pandemia de Covid-19, e ampliar unidades de abrigo que recebam, também, os animais de estimação dessas pessoas, casas de acolhimento para mulheres em situação de rua e vítimas de violência e ampliação de programa habitacional.
Espera-se garantir o acesso à saúde, ampliando as equipes de consultório na rua e, entre as maiores urgências, vacinar as pessoas em situação de rua.
**No dia 25 de abril fez três anos da travessia de Maria Lúcia Pereira da Silva para outro plano. Ela viveu muitos anos em situação de rua, foi coordenadora do Movimento Nacional de População de Rua e lutava pela consolidação de dados sobre essa população.
*Doutoranda em Saúde Coletiva – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Integrante do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (fomeri.org) da UFPB.
Edição: Cida Alves