Por Zênia Chaves Araújo de Melo*
Uma grande dificuldade se coloca para um artigo jornalístico abordando o período em questão (1959-1964): embora temporalmente curto, é o mais intenso politicamente e o que concentra os confrontos mais significativos entre camponeses e latifundiários. Esses anos também viram o crescimento de movimentos sociais e sindicais urbanos e a consolidação das Ligas Camponesas como entidades representativas dos trabalhadores rurais, tendo estado à frente das mobilizações pelas chamadas “reformas de base”, que dividiam o país no governo de João Goulart (1961-1964). Na Paraíba, tínhamos, como governador, Pedro Moreno Gondim, que concluiu o mandato de Flávio Ribeiro Coutinho (de quem era vice) e elegeu-se, em 1960, com apoio da UDN (União Democrática Nacional) e dos usineiros.
Para nos guiar nesta tarefa (e sem prejuízo de outras obras historiográficas), usaremos três livros de memórias de personagens que viveram esses acontecimentos: A vida e o tempo (1997), o segundo volume de memórias do jornalista, advogado e parlamentar Joacil de Brito Pereira, apoiador do grupo da Várzea; o livro Nordeste, o Vietnã que não houve: Ligas Camponesas e o golpe de 64 (1996) de Francisco de Assis Lemos de Sousa, professor, parlamentar e presidente da Federação das Ligas Camponesas, e Eu marcharei na tua luta (1997), livro-depoimento de Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira e militante camponesa.
A violência e a miséria reinantes no meio rural do Nordeste brasileiro despertaram a atenção de jornais do Sudeste que enviaram correspondentes como Antonio Callado, cujos artigos foram reunidos e publicados no livro Os industriais da seca e os Galileus de Pernambuco (1960). O assassinato de João Pedro Teixeira, a mando do Grupo da Várzea, em abril de 1962, criou tal clima de comoção que uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) federal foi enviada à Paraíba e outros estados nordestinos para investigar a situação dos camponeses. Repórteres internacionais e autoridades norte-americanas, inclusive o senador Bob Kennedy, também se fizeram presentes na região, cuja situação social e econômica vinha sendo analisada por Celso Furtado com o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), do qual resultaram estudos que levaram à criação da SUDENE em 1959.
Os conflitos entre trabalhadores e latifundiários eram frequentes e os relatos são abundantes, principalmente nos anos aqui abordados, quando a conjuntura política estava extremamente acirrada em torno das reformas de base e, especialmente para nossa região, da reforma agrária. Elizabeth Teixeira nos relata alguns incidentes ocorridos antes do assassinato de João Pedro. Capangas simulavam invasão à casa durante a noite:
Os meus filhos, eles são uns frustrados de não poder dormir de noite, com medo das pancadas nas portas, com medo dos capangas.
Colocação de comida envenenada para os cachorros da família, cerco e invasão da casa por forças do Exército, prisão e espancamento de João Pedro:
No dia seguinte, suas costas estavam roxas de pau, de cassetete da polícia.
Vários outros incidentes como agressão física, extorsão, despejo, destruição de plantações e de moradias, expulsão de moradores e suas famílias, assalto à mão armada, espancamento do Dep. Assis Lemos e do líder Pedro Fazendeiro por sobrinhos de Aguinaldo Veloso Borges também são relatados. Esses fatos eram corriqueiros e noticiados pela imprensa, como um ocorrido na Fazenda Açude do Mato, Sapé, em julho de 1960, relatado pelo jornal Correio da Paraíba, que também publicou declaração do agressor:
Tinha ordem da Companhia para expulsar, no prazo de 48 horas, qualquer trabalhador ou rendeiro que tenha a carteira da Associação dos Trabalhadores [Liga] de Sapé.
Por outro lado, as ações da Liga, além da resistência física, incluía reuniões de negociação com o governador Pedro Gondim, passeatas, comícios-relâmpago nas cidades da região, ajuizamento de ações contra os despejos, expulsões, etc. Paralelamente, o presidente das Federação das Ligas e deputado estadual Assis Lemos pleiteava instalação de postos de saúde (SAMDU - Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência da Previdência Social) em municípios próximos às usinas e ações de alfabetização também estavam ocorrendo através da CEPLAR (Campanha de Educação Popular da Paraíba), entidade de professores e estudantes universitários que contava com o apoio do governo do Estado.
Porém, os incidentes mais graves – os assassinatos, iniciaram-se a partir de março de 1962 com as violências verificadas no Engenho Miriri, de propriedade dos Ribeiro Coutinho, quando divergências sobre a forma de pagamento do foro provocaram lutas em que dois capangas foram mortos, um administrador ferido, um vigia desaparecido e dois camponeses fuzilados, sendo que um deles era Alfredo do Nascimento, presidente da Liga do município.
Menos de um mês depois desse incidente violento, no dia 02 de abril, João Pedro Teixeira, maior líder das Ligas, foi assassinado em emboscada numa estrada ao voltar de João Pessoa para sua casa em Sapé. Segundo o resultado do inquérito policial e o pronúncia do juiz Walter Rabelo, em março de 1963, os mandantes foram Aguinaldo Veloso Borges, Pedro Ramos Coutinho e Antonio José Tavares, chamado “Antonio Vítor”, e os autores materiais foram o Cabo da Polícia Militar Antonio Alexandre da Silva, vulgo “Gago”, o soldado da PM Francisco Pedro da Silva, conhecido como “Chiquinho”, e o vaqueiro do Engenho Recreio, de propriedade de Aguinaldo Veloso Borges, Arnaud Nunes Bezerra, vulgo “Arnaud Claudino”.
O assassinato de João Pedro causou comoção: o jornal do Governo do estado, A União, teve várias edições esgotadas; o enterro, no dia 03 de abril, reuniu milhares de camponeses revoltados e teve a presença do Chefe da Casa Civil (representando o Governador Pedro Gondim), do Chefe do Gabinete Militar, de representantes da Federação das Ligas Camponesas, da União Estadual dos Estudantes, e de vários deputados, lideranças políticas e sindicais, jornalistas e populares. Nos comentários que se espalhavam pelo estado, o Grupo da Várzea era apontado como mandante do crime, acusação essa que pautou todos os discursos feitos em comício ocorrido logo após o sepultamento do corpo de João Pedro Teixeira.
O Grupo da Várzea reagiu imediatamente através de Joacil de Brito que, da tribuna da Assembleia Legislativa, acusou o Partido Comunista de mandar matar João Pedro. Referindo-se aos latifundiários como “ruralistas acossados” e a Aguinaldo Veloso Borges como “líder maior da resistência contra os camponeses”, Joacil narra como articulou a defesa de Aguinaldo, contando, inclusive, com o apoio do seu sogro, Eitel Santiago, presidente da Associação dos Proprietários Rurais, cujo irmão, Heitor Santiago, era cunhado de Aguinaldo.
O grande feito consistiu em ter articulado, na Assembleia Legislativa, uma sessão em que Aguinaldo Veloso Borges, então sexto suplente de deputado, assumiu o cargo após a renúncia, em sequência, de todos os outros suplentes anteriores a ele. Dessa forma, entre licenças, afastamentos para ocupar outros cargos e “doenças”, renunciaram aos seus mandatos, consecutivamente: Wilson Braga, Nominando Diniz, Flaviano Ribeiro Coutinho, Carlos Pessoa Filho e Clovis Bezerra. Em menos de uma hora após o início da sessão, Aguinaldo Veloso Borges estava investido do mandato de parlamentar com imunidade legal.
No dia 27 de março de 1963, o Juiz Walter Rabelo concluiu a instrução do processo, registrando que Aguinaldo Veloso Borges havia “se acobertado com o manto das imunidades parlamentares”. No tocante aos executores do crime, Alexandre e “Chiquinho” foram condenados por unanimidade em abril de 1963, mas, em março de 1965, houve novo julgamento e foram absolvidos. O vaqueiro Arnaud desapareceu logo após o crime e não se teve mais notícia dele, sugerindo a hipótese de queima de arquivo. No local do crime, foi erigido um monumento a João Pedro Teixeira, destruído após o golpe de 1964.
Com relação à família de João Pedro Teixeira, é importante registrar que, sete meses após seu assassinato, sua filha mais velha, Marluce, de 18 anos, cometeu suicídio “por causa do assassinato do pai dela”. Antes disso, no dia 16 de junho, Paulo, um dos onze filhos de João Pedro, à época com dez anos de idade, e que havia dito que vingaria a morte do pai, sofreu um atentado no roçado, tendo a bala se alojado na sua cabeça. Foram feitas várias cirurgias, Paulo Teixeira ficou meses internado, mas nunca se recuperou totalmente.
Em fevereiro de 1963, outro incidente grave, que resultou na morte de um latifundiário, gerou mais tensão na região. O fazendeiro Rubens Régis, tesoureiro da Associação dos Proprietários Rurais, acompanhado de “cerca de quarenta pessoas, entre elas Aguinaldo Veloso Borges, Joacil Pereira, Fernando Meireles, César Cartaxo” chegaram numa área de conflito em que camponeses haviam reconstruído alguns casebres destruídos pelos latifundiários, retiraram um camponês de dentro de casa, o amarraram a uma árvore e derrubaram o casebre. De outro casebre, partiram os tiros que mataram Rubens Régis. Joacil de Brito classifica a atitude de Régis como “Uma imprudência. Mais que isso, uma temeridade”, mas, mesmo assim, acusou o seu colega de parlamento, Assis Lemos, de ser o principal responsável pelo assassinato, em entrevista concedida ao jornal Diário de Notícias, do Rio de Janeiro.
Ocorre que, na data do assassinato, Assis Lemos se encontrava fora da Paraíba, para onde retornou imediatamente ao ler a notícia. Seguiu-se, então, na Assembleia Legislativa, uma tensa sessão em que dois irmãos de Rubens Régis, armados, se fizeram presentes com a intenção declarada de vingar a sua morte. O presidente da Assembleia, Deputado Clovis Bezerra, suspendeu a sessão e solicitou a Aguinaldo Veloso Borges que retirasse os elementos armados. Além destes, também estava presente e portando armas, Manoel Veloso Borges (sobrinho de Aguinaldo), que já havia matado o prefeito de Itabaiana, José Silveira. A sessão terminou, mas a ameaça de morte para Assis Lemos permaneceu para além do recinto da Assembleia.
Outro incidente extremamente violento e que ficou conhecido como a “Chacina de Mari” ainda iria ocorrer em janeiro de 1964 na propriedade de Nezinho de Paula. Os relatos são conflitantes: um aponta para a morte de seis pessoas, entre camponeses, seguranças e o administrador da fazenda; outro cita onze mortos, sendo sete do lado dos latifundiários e quatro camponeses, informando ainda que a fazenda onde se deu o episódio era de Renato Ribeiro Coutinho. Do lado dos camponeses foi morto o presidente da Liga, Antonio Galdino.
Consensual é o relato do comício na frente do Palácio da Redenção com a presença e discurso dos deputados Alfredo Pessoa de Lima, Marcus Odilon Ribeiro Coutinho, Flaviano Ribeiro Coutinho, João Batista de Lima Brandão, Aguinaldo Veloso Borges, Sindulfo Santiago e o próprio Joacil de Brito Pereira. O fato gerou uma enorme crise política com o Governador Pedro Gondim, cuja reação foi mandar instalar, na região, uma delegacia especial sob o comando do violento Coronel Luís de Barros que, em poucas semanas, perseguiu e destruiu as Ligas antes mesmo do golpe civil-militar deflagrado meses depois.
Nas suas memórias, Joacil de Brito relata como se deu a participação do grupo da Várzea na preparação e no dia do golpe. Todos os contatos entre os militares e os civis eram intermediados pelo Coronel Ednardo D’Ávila, então comandante do 15º RI. Em 1976, já na patente de general, ele chegou a chefiar o II Exército, sediado em São Paulo, e o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna, órgão da repressão) quando da morte, sob tortura, do operário Manuel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog. A atuação do Grupo inicia-se com a compra de armas e munição em São Paulo, através de uma comitiva da qual faziam parte o próprio Joacil, Marcus Odilon Ribeiro Coutinho, Flaviano Ribeiro Coutinho e Luiz Ribeiro Coutinho.
Na noite do dia 31 de março tiveram início as ações do “esquema civil”, que se estenderam pela manhã do dia seguinte, juntamente com o exército. Dentre os líderes presentes é citado Aguinaldo Veloso Borges, cuja missão, juntamente com Jocelin Veloso Borges e seus filhos, era “trazer gente das suas fazendas, engenhos e usinas” (ex-soldados, ex-cabos e ex-sargentos reformados ou excluídos do Exército e da Polícia) que seria armada, permanecendo na casa de Flaviano Ribeiro Coutinho, em Tambaú, à espera de instruções. Apesar de não ser relatada nenhuma ação específica realizada por essas pessoas, o desfecho dos acontecimentos é largamente conhecido.
O golpe civil-militar promoveu perseguições a Elizabeth Teixeira e a todas as lideranças camponesas e urbanas, além do deputado Assis Lemos de Souza, o qual foi cassado (antes mesmo da edição do Ato Institucional nº 1), preso, torturado e enviado para Fernando de Noronha.
Segundo o relato de Elizabeth Teixeira, quando ocorreu o golpe, ela estava no Engenho Galiléia, em Pernambuco, gravando o que viria a ser o filme Cabra marcado pra morrer (1984), de Eduardo Coutinho (veja abaixo), de onde fugiu para Recife. Posteriormente, entregou-se ao Exército, ficou presa três meses e 24 dias. Libertada, fugiu de novo para Recife e, de lá, para o Rio Grande do Norte, onde ficou clandestina, com o nome de Marta Maria da Costa, vivendo apenas com um filho e sem notícias dos outros dez, que haviam ficado na Paraíba. Só se reencontraram em 1981, dezessete anos após o golpe.
Líderes camponeses como Nego Fuba e Pedro Fazendeiro, presos e oficialmente libertados pelo Exército em setembro de 1964, estão desaparecidos até hoje, conforme registrado no relatório da Comissão Estadual da Verdade da Paraíba.
A luta dos trabalhadores rurais e urbanos por terra, melhores condições de trabalho e acesso a direitos de cidadania foi brutalmente interrompida pelo golpe civil-militar de 1964. Simultaneamente, o mesmo fato histórico fortaleceu as oligarquias paraibanas, principalmente aquelas agrupadas em torno da propriedade da terra. Nossa pesquisa encerra-se aqui, mas o Grupo da Várzea, fortalecido, continuará a ser acompanhado em outros artigos por outros/outras autores/autoras, com quem temos um encontro marcado em futuro próximo para juntos analisarmos a permanência do Grupo da Várzea na política paraibana do século XXI.
* Bancária aposentada, ex-dirigente sindical, bacharelada em Sociologia e Ciência Política pela UFRN e licenciada em História pela UFPB. Atualmente é aluna do Programa de Pós-Graduação em História da UFPB (PPGH/UFPB).
Edição: Cida Alves