Era 2007. Eu, menino, tinha 14 anos e morava na zona norte de Campina Grande. Um amigo, daqueles que ficam em nossas vidas e marcam nossas trajetórias, veio me mostrar, animado, uma música que tinha escutado em um CD do seu pai. A música era Vida Loka Parte 2, dos Racionais. Dentro do som apresentado lembro que algumas frases ficaram na minha cabeça:
Vamo brindar o dia de hoje que o amanhã só pertence a Deus
Ouvindo cassiano, rá, os gambé não guenta
Em duas coisas na poesia do grupo do Capão, pensava eu com meus botões: a primeira questão era sobre a truculência da polícia e a segunda era sobre quem era Cassiano pra os “homi não guentar”?
O tempo passou. Quando, em um encontro de amigos, uma outra pessoa muito querida colocou uma música que era impossível de escutar e permanecer parado. A música tinha um refrão repetitivo (porém não enjoativo), os acordes formavam uma melodia repetitiva, mas expansiva, intimidadora e marcante. Foi aí que Cassiano retornou à minha vida. No refrão, o cantor, até então distante e desconhecido, passava a ficar mais e mais perto. Quando um outro colega e também professor de história falou que aquele tal de Cassiano de que o Mano Brown falava em Vida Loka parte 2 era o meu conterrâneo da Zona Leste, paraibano e natural de Campina Grande: Genival Cassiano.
Nascido no bairro do José Pinheiro em 16 de setembro de 1943, Genival Cassiano dos Santos, homem negro, fez parte da triste descida para o sudeste do país movido pelo processo de industrialização desigual do Brasil. Cassiano e sua família foram mais um número. Aos 6 anos, ele e sua família, como tantas outras, vão para Rio de Janeiro com o objetivo de conquistar uma vida melhor e na busca por trabalho. O fluxo migratório nordestino para a, então, capital federal foi um processo que teve seu início de forma sistemática no Império; porém, é na década de 50 que esse fluxo aumenta, principalmente por conta do processo de industrialização que tanto Rio de Janeiro quanto São Paulo vivem nessa década.
Cassiano costumava afirmar que uma das poucas lembranças que tinha da Paraíba e de Campina Grande era a amizade que seu pai tinha com Jackson do Pandeiro. Ele falava o seguinte sobre a relação:
Jackson era amigo da nossa família e trabalhava para o meu pai, que fazia reformas. Me pegou muito no colo, dizem que uma vez eu dei uma urinada nele.
Entretanto, é só em 1964 que ele começa sua carreira como músico, tocando no grupo Bossa Trio. Vale o destaque sobre o Bossa Trio, pois o grupo vai ser fundamental na compreensão sobre qual o caminho musical que Cassiano seguiria. O grupo é fruto das portas que a Bossa Nova abriu para a música brasileira. Justamente pela relação íntima que a Bossa Nova tinha com o Jazz, este intercâmbio acaba por contribuir na chegada de um novo estilo musical no Brasil: o Soul.
Depois do Bossa Trio, Cassiano e o seu irmão Camarão constroem o grupo Os Diagonais. É nele que Cassiano passa a conviver com Tim Maia, pois o grupo passou a ser a back band do cantor. Do primeiro disco dos diagonais, lançado em 1969, destaco a belíssima versão da música do grande Rosil Cavalcanti, Meu cariri, ritmado nas bases daquilo que viria a ser o Soul brasileiro.
Um ano depois, após um tempo nos Estados Unidos, Tim Maia viu em Cassiano também um entusiasta do som de Marvin Gaye e Stevie Wonder, convidando-o para participar da produção do seu primeiro disco, além de estender o convite para que o paraibano fosse o guitarrista da banda do síndico. O resultado é que o LP de estreia de Tim Maia, intitulado com seu próprio nome, foi um sucesso estrondoso.
O disco começa com a canção Coroné Antônio Bento, que Os Diagonais tocavam nos seus shows. Canção esta do poeta, músico e genial maranhense João do Vale. Esse som demarcava o Soul brasileiro e o jogava em um outro patamar. Vale o destaque de que, nesse disco, Cassiano compõe quatro canções de 12 músicas produzidas, as quais são: Padre Cícero (junto com Tim Maia), Você Fingiu, e outras duas canções que ficaram eternizadas na voz de Tim Maia, mas cuja composição era do nosso conterrâneo com Silvio Rochael: Primavera (Vai Chuva) e Eu amo você.
O sucesso que o disco de Tim Maia levou abriu as portas para que, em 1971, Cassiano pudesse lançar seu primeiro disco solo. Intitulado Imagem e Som (1971), lançado pela gravadora RCA, é nele que se pode escutar a melodia um pouco mais intimista e experimental que Cassiano coloca nos sucessos Eu amo você e Primavera. Saliento, também, as duas composições assinadas por Cassiano e Tim Maia: Ela Mandou Esperar e Tenho Dito:
Dois anos depois, em 1973, Cassiano lançou o seu disco intitulado Apresentamos Nosso Cassiano. Todas as composições desse disco foram assinadas pelo artista. Pode-se perceber que existe uma pequena diferença entre o Imagem e Som (1971) e o Apresentamos Nosso Cassiano (1973): uma leve tendência a um enquadramento menos experimental e mais vinculado às baladas românticas. Vale destacar a canção Cedo ou Tarde, que teve participação da cantora Suzana, e a canção Castiçal, que tem um verso que é poesia pura:
muito amigo das costas, longe o mal me vê
A tentativa de Cassiano em 1973 era entrar de vez na rota comercial e conseguir emplacar um single. Entretanto, é só com o disco Cuban Soul, de 1976, que ele consegue um certo respaldo comercial. As canções A Lua e Eu e Coleção foram trilhas sonoras de duas novelas da Rede Globo: O Grito (1976) e Locomotivas (1977).
Apesar do grande sucesso que esse disco teve, ao ponto de emplacar canções nas novelas, Cassiano passa a ser escanteado pela indústria fonográfica. Em 1978, ou seja, três anos depois do estrondo do Cuban Soul, a CBS (gravadora com que ele tinha contrato) decide não lançar o seu quarto álbum, alegando a falta de retorno financeiro. Cassiano foi deixado à beira do caminho e, não bastasse isso, os graves problemas pulmonares, tendo que retirar uma parte do pulmão, fizeram com que a indústria fonográfica abandonasse o músico.
Depois de Cuban Soul, Cassiano só apareceu novamente na cena em 1984. O seu último trabalho em vida em um estúdio foi em 1991, na releitura do disco Cedo ou Tarde, que contou com diversos convidados como Sandra de Sá, Cláudio Zoli e Marisa Monte. Nesse disco, consta uma canção que, até então, era inédita, intitulada Rio Best-seller.
No entanto, o que marcou a construção desse disco foi o fato da insatisfação de Cassiano por não participar da direção musical do mesmo. Ele ficou bastante triste com o fim que o disco levou, sendo esse o último em vida do gênio paraibano. Em entrevista no inicio dos anos 2000, Cassiano fala o seguinte sobre o Cedo ou Tarde (1991):
Não, esse disco de 91 não foi um disco do Cassiano, foi um disco de produtor [Líber Gadelha]. E isso fica assim meio… olha, bota essa música e essa, essa. Mas você é artista, é que nem jogador de futebol: botam uma bola meia murcha, mas você sai jogando. Tinha coisas que não foram a meu contento.
Escanteado pela indústria fonográfica, mas admirado por todos os estudiosos da música brasileira, Cassiano faleceu na última sexta-feira, (07/05) vítima de uma parada cardiorrespiratória, como mais um brasileiro que se vai neste grande e silencioso cemitério que tem sido nossa nação. O que me motivou a escrever esse texto, que estava guardado na gaveta digital desde o ano passado, é o direito à memória que nós, enquanto povo paraibano, devemos ter sobre os nossos.
Cassiano é filho de nossa terra. Por isso, sua memória e seu legado devem ser preservados não só por nós, paraibanos, mas também enquanto patrimônio da música brasileira. É partindo de um lugar comum de Cassiano, entendendo a complexidade de sua obra, que sabemos que ele estará presente toda vez que tocar, em alguma quebrada do Brasil, o som dos Racionais Vida Loka parte 2. Assim como estará presente em cada cover da canção Primavera. E, por fim, estará embalando os casais apaixonados que cantarolam Eu amo você com todo o amor que existe nesta vida.
Ítalo Sochin é historiador e mestrando em História pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG
Edição: Cida Alves