Paraíba

SABER-FAZER DO POVO

Artigo | Viva o São João! Entre um quê de saudade e um quê de esperança

Mais um ano reinventando a tradição

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
"Não faltou forró (ele veio via live), não faltaram bandeirolas, balões e fogos"..
"Não faltou forró (ele veio via live), não faltaram bandeirolas, balões e fogos".. - Emanuel Tadeu

Cadê aquele balãozinho/Siá Filiça/Que coloria o meu lugar/Minha esperança ainda dorme/

Siá FiIiça/E eu com pena de acordar/Quebrar panela no terreiro
E a fogueira pra pula/Uma quadrilha bem marcada/E um belo São João de latada
Que era bom pra namorar/Quando me lembro disso tudo/Siá Filiça
Me dá vontade de chorar.

                                                                                Siá Filiça (Composição: Bira Marculino/Fátima Marculino - 1996)

 

Por mais um ano, a Pandemia do Covid 19 nos conduziu a um lugar de saudade. Por mais um ano, não vivenciamos presencialmente a mais tradicional manifestação festiva do Nordeste, expressão da nossa identidade: a festa de São João. Para cá trazida pelas mãos dos portugueses, a festa religiosa da tradição católica cristã foi ao longo dos séculos sendo amalgamada: “juntou-se” aos saberes, fazeres e às práticas mágico-sagradas afro-indígenas. Inicialmente experenciada no mundo rural, dele também incorporou as suas práticas e tradições culturais; posteriormente, à medida que a população do campo migrava para a cidade, a festa foi transmutada para o mundo urbano, ganhando um formato híbrido, tornando-se rurbanizada.

Por assim dizer, os nossos festejos juninos sempre apresentaram este caráter dinâmico, aberto a incorporar o novo, sempre impelidos a reelaborar suas práticas. De tal modo que “aquelas” tradicionais festas de São João há muito tempo existem apenas em nossas saudosas memórias. Há muito tempo deixamos de olhar o rosto na bacia à luz da fogueira buscando confirmar mais um ano de existência, há muito tempo deixamos de pular a fogueira e de contrair laços de compadrio e apadrinhamento – imaginem então assar o milho na palha e comer fila sim/fila não, depois colocar a espiga meio-comida embaixo do travesseiro e, após rezar uma “Salve Rainha” até mostrai-nos, dormir para sonhar com o futuro marido ou a futura esposa.

Divagações à parte, há muito tempo não só a fogueira, mas os demais símbolos da festa cristã perderam o significado sagrado, tornando-se meros ornamentos da festa: o mastro e as bandeiras dos santos, a procissão das velas, as rezas, as superstições e crendices... E na mesma medida, nas últimas décadas, as tradicionais práticas dos festejos juninos foram sendo reinventadas: quadrilhas espetacularizadas, música, danças, ornamentos, roupas e comidas típicas foram sendo estilizadas, dinamizadas, modernizadas, alteradas... Inclusive, há alguns anos queimar fogueiras nas ruas das nossas grandes cidades já estava proibido.

Câmara Cascudo (em Civilização e Cultura, 1983), nos diz que na cultura popular existiria um “processo lento ou rápido de modificações, supressões, mutilações parciais no terreno material ou espiritual do coletivo sem que determine uma transformação anuladora das permanências características”. De tal modo, estas “permanências características” são oriundas do saber e do saber-fazer do povo e atribuem à cultura popular seu caráter de continuidade, funcionalidade e utilidade, que, por sua vez, a torna “(...) mantenedora do estado normal do seu povo quando sentida viva, sempre uma fórmula de produção”.

Portanto, os nossos festejos juninos nunca foram estáticos, tampouco isentos de influências, pelo contrário, foram sempre reflexo e assimilador da realidade e do tempo vivido. Foi assim, como resultado de movimento, fusões e trocas que se tornou esta festa dinâmica e voltada para o mundo que a rodeia.

Assim, diria que mais uma vez os festejos juninos saíram ganhadores. Não faltou forró (ele veio via live), não faltaram bandeirolas, balões e fogos. Na mesa dos mais afortunados, menos combalidos pelos efeitos do Covid em suas finanças, não faltou pamonha, canjica, milho cozido, mungunzá, cuscuz, tapioca. Lamentavelmente, o que faltou, e será irrecuperável, foram presenças, mais de 500 mil presenças – efetivamente perdidas, definitivamente tornadas ausências, agora restritas à memória.

E nós, gente brasileira, ganhamos. Os festejos juninos continuarão sendo uma festa de família, de encontros e reencontros saudosos. A Pandemia aguçou nosso desejo de encontrar, de celebrar e está nos fazendo reavaliar laços, nos levando a perceber o quanto queremos continuar (com)vivendo no mesmo espaço.

Para o futuro, vamos guardar nosso desejo de festejar, de encontrar/abraçar e dançar forró. Para agora, vamos lutar por vacina no braço e comida no prato.  

Que viva São João, Santo Antônio e São Pedro!

 

Cristiane Nepomuceno é Antropóloga e Professora da UEPB/NEABI - AINPGP

Edição: Heloisa de Sousa