Um filme que dá passos necessários no resgate de uma história que tem o direito de ser recapitulada
Por João Carlos Barbosa e Thiago Lima*
As paisagens amplas e exuberantes do sertão cearense marcam a 1 hora e meia do filme Currais, um docudrama de Sabina Colares e David Aguiar cuja missão é resgatar a trágica história dos campos de concentração no Ceará na seca de 1932. Alternando entre documentário e ficção, a obra busca compilar as memórias de um passado negligenciado que representa uma das maiores tragédias do século XX no nordeste brasileiro.
Os campos de concentração, apelidados de “currais do governo”, foram uma série de instalações interligadas por um propósito comum: o confinamento dos retirantes flagelados das secas, que vinham do Ceará e de outras partes do Nordeste, a fim de impedir a chegada dos mesmos à capital. As impetuosas secas de 1877, 1915 e a de 1932 foram responsáveis por deslocar um grande contingente populacional, numa busca exasperada por escape e sobrevivência perante um misto de fúria ambiental e o descaso dos governos federal e estadual para com o interior do estado.
Na última destas, a de 1932, que é o foco do documentário, o projeto dos campos de concentração obteve ímpeto considerável e foi responsável pela implementação de 7 campos (Ipu, Quixeramobim, Senador Pompeu, São Mateus, Crato e dois em Fortaleza). A historiadora Kênia Rios, em sua obra Isolamento e poder: Fortaleza e os campos de concentração na seca de 1932, menciona o grande papel da mídia local e da elite fortalezense na instauração de um terror que abriu preceitos para a “higienização” de Fortaleza, a “loira desposada do sol”, sendo o campo de concentração um instrumento essencial para mantê-la a salvo daqueles que eram considerados bárbaros, incivilizados e indesejáveis: os retirantes, que, em sua maioria, eram camponeses sertanejos.
A abordagem do documentário é constituída tanto por meio de relatos orais de sobreviventes e/ou habitantes, como por meio da visitação às mencionadas localidades. Como exposto na obra, os campos eram constituídos de centenas e centenas de barracos de palha, muitos deles abrigando mais de 20 mil flagelados cada, para além dos pontos oficiais, por assim dizer, de administração do governo federal. Nesses assentamentos, alimentos e itens de necessidade básica eram escassamente garantidos, sustentando um estado constante de miséria e fome. “Comiam muito pouco, trabalhavam o dia todo debaixo do sol”, conta um dos entrevistados, ao descrever uma alternância entre miséria e sensação de escravidão vivenciada pela massa de famintos.
As condições eram as piores possíveis. Milhares e milhares de indivíduos eram confinados em espaços precários, sem alimentação suficiente e sem o mínimo de saneamento básico. Assim, a suscetibilidade a ferozes epidemias era exponencial, algo que não ignorado desde o episódio da Grande Seca de 1877. Já naquela seca, observou-se que a epidemia de varíola, aliada à fome, foi responsável pela morte de milhares de flagelados, praticamente todos camponeses sertanejos.
A desumanidade com a qual os flagelados eram tratados era tal que, nos currais de 1932, eram os próprios “concentrados” – que muitas vezes tinham a cabeça raspada, eram vestidos com roupas de estopa e impedidos de sair dos campos – os incumbidos de cavar as valas onde atirariam os corpos daqueles que sucumbiam à fome e às doenças ali mesmo. É apenas sob a chave do racismo estrutural que podemos compreender como foi possível aglomerar concidadãos extremamente debilitados num “formigueiro humano”, como narra outro personagem.
Quando a chuva deu os primeiros sinais de esperança, os residentes próximos à capital, em sua maioria, optaram por continuar em suas proximidades, num processo que acelerou a expansão das favelas em Fortaleza. Flagelados tornaram-se favelados, instaurando-se mais uma vez um ciclo vicioso de miséria e fome.
A busca pela reconstrução dessa história, que foi negligenciada e silenciada, pertencente a nós, é mais do que necessária: é fundamental para superar o “bovarismo brasileiro”, isto é, a crença de muitos brasileiros de que é possível se tornar um país tão “normal” quanto os países desenvolvidos, escondendo, propositalmente ou por recalque, as condições e forças sociais que nos trouxeram até aqui. Em outras palavras, é a vontade de ser outro, sem mudar em nada, e, para isso, ignora-se ou oculta-se o passado trágico e vergonhoso.
Isso fica claro quando observamos que, dos sete campos instalados em 1932, apenas um encontra-se minimamente preservado (Patu) e em processo de tombamento, enquanto o reconhecimento dos campos na capital sofre resistência. Para fazer uma comparação: muitos brasileiros que visitam a Europa fazem questão de conhecer os museus e memoriais dos campos de concentração nazistas. Contudo, quantos brasileiros se dedicam a conhecer as ruínas de Patu? Quantos, quando vão ao Ceará em férias, colocam no roteiro a “caminhada das almas” que busca lembrar e honrar os mortos naquele campo localizado na cidade de Senador Pompeu?
Apesar da atrocidade governamental e das elites locais contra o campesinato, extremamente vulnerável em face da seca e da fome, este episódio de grande escala é apenas mais um que permanece silenciado pelas autoridades e, também por isso, ignorado pela maior parte dos brasileiros. Assim, quando se buscam exemplos de ações governamentais intoleráveis, como as de genocídio ou de crime contra a humanidade, normalmente a referência são os campos de concentração nazistas. Acontece que, infelizmente, temos os nossos próprios campos de concentração, onde fome, epidemias e repressão governamental aceleraram a morte e causaram traumas profundos em nós mesmos.
Lutar contra a ocultação desta história é a principal finalidade de Currais, um filme que dá passos necessários no resgate de uma história que tem o direito de ser recapitulada. Apagamento, silêncio e esquecimento não fazem jus aos milhares e milhares de corpos que, pela negligência das elites do poder, pereceram pela fome e pela doença nesses assentamentos. E de outros tantos que morreram ou que ainda vivem traumatizados. A preservação daquilo que um dia foi história é essencial para que os nossos mortos pela epidemia da fome, bem como nossos heroicos sobreviventes, possam descansar em paz.
FICHA TÉCNICA
Currais (2019), 1h30 min.
Classificação: Documentário, Drama, Aventura
Direção: Sabina Colares, David Aguiar
Roteiro: Sabina Colares, David Aguiar
Elenco: Rômulo Braga, Zezita Matos, Vitor Colares
SINOPSE
Depois de passar anos estudando a respeito dos campos de concentração cearenses que foram responsáveis pelo flagelo de milhares de pessoas após a seca de 1932, Rômulo (Rômulo Braga) embarca em uma jornada pelos sertões em busca de respostas sobre alguns mistérios que permanecem no passado. Entre documentário e ficção, o filme viaja por fotos, documentos e relatos reais.
Disponível nas seguintes plataformas digitais: iTunes, Apple TV+, Google Play, YouTube Filmes, Vivo, Now e Looke.
*Membros do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB.
Fomeri.org
Edição: Heloisa de Sousa