Os desafios atuais para o devido enfrentamento ao racismo são inúmeros
Por Jusciney Carvalho Santana*
É ainda bem recente o caminho de reparação que o Estado Brasileiro tem buscado assumir, a partir da adoção de políticas públicas que possam contribuir para redução das desigualdades étnico-raciais, seguramente legitimadas desde o pós-abolição, tendo em vista que as ações governamentais implementadas no final do século 19 não contribuíram para garantir a conquista da liberdade.
Sem direito à moradia, oportunidades de trabalho, inclusão no sistema educacional e acesso à saúde, o significado de estar livre, portanto, revelou-se inviável, um continuar no aprisionamento, nos moldes do colonialismo implantado no Brasil.
O problema é que não estamos falando do passado. Esta realidade continua muito viva, nos assombrando, sobretudo quando refletimos sobre o contexto pandêmico, cujos indicadores de morte e vulnerabilidade ao novo coronavírus evidenciam quem são os mais atingidos.
A pandemia no Brasil tem cor e tem gênero, é o que nos revelam as recentes pesquisas censitárias, mesmo de forma precarizada já que o quesito raça/cor embora não seja um indicador priorizado, continua sendo essencial para identificarmos os perfis de públicos atendidos nos sistemas informacionais de hospitais, escolas, universidades, presídios e demais espaços institucionais, públicos e privados.
E se considerarmos que no Brasil as políticas públicas afirmativas devem cumprir o preceito de estimular a mobilidade social da população negra, composta de pretos e pardos, segundo a classificação do IBGE, temos então uma tarefa coletiva que é urgente de ser assumida por cada um(a) de nós, especialmente nesse cenário pandêmico de inúmeras crises, incluindo aí os impactos na educação, em todos os níveis e modalidades.
Para nos inspirarmos no nosso “dever de casa”, nesta sociedade que foi absolutamente estruturada no racismo, dispomos de alguns avanços legais (nos dois sentidos): o reconhecimento do racismo como crime inafiançável e imprescritível, no código penal, desde os anos 1940; a lei 10.639 de 2003, que altera a LDB, instituindo a obrigatoriedade da inclusão curricular da história e cultura africana e afro-brasileira, em escolas públicas e privadas; a criação do estatuto da igualdade racial, em 2010, a reserva de vagas em cursos de graduação (lei federal de 2012), nas instituições públicas, e também nos concursos públicos federais (em 2014).
Também é preciso mencionar que, a partir do ano 2018, em virtude do aumento de fraudes e das denúncias, os processos seletivos nas instituições públicas tiveram a necessidade de incluir comissões de heteroidentificação, como forma de garantir que as cotas fossem destinadas aos sujeitos de direito desta importante política, especialmente quanto às cotas raciais – que desde a sua origem revelam como a branquitude opera e legitima continuamente para manutenção de privilégios na ocupação de espaços de poder.
Entretanto, como efeitos positivos dessas mudanças, especialmente no campo científico, já é possível afirmar que temos uma profusão de novos escritos, de escritores negros e escritoras negras que ampliaram os nossos olhares e, mais que isso, nos convocam a compreender como a universidade brasileira precisa ser transformada, incorporar novos tons, ou seja, enegrecer verdadeiramente.
Trata-se de incluir novas metodologias, novas epistemologias, de aprender a ser diversa, plural e democrática. A universidade brasileira, originalmente excludente e elitista, conta hoje com um perfil discente que exige mudanças radicais no ambiente acadêmico. E isso por si só repercute em novas pesquisas, e também na entrada de mais profissionais negros e negras, em diferentes áreas de atuação.
Nessa perspectiva não há retrocesso possível nem permitido para todas essas conquistas importantes, que devem ser lidas como resultado de muitas lutas do movimento negro, ou melhor, dos movimentos negros que se ampliam, se fortalecem e resistem aos maus tempos e que estão cada vez mais atentos, sobretudo no atual cenário político, jurídico e educacional, a partir do fenômeno da pandemia.
Os desafios atuais para o devido enfrentamento ao racismo são inúmeros, quando consideramos um país dizimado por infinitas perdas humanas e materiais. O racismo continua sendo imperativo, atravessando todas as crises do capitalismo e exigem, da sociedade como um todo, um compromisso com o futuro e com esse presente assolado
por tantas precariedades, pelo aumento exponencial da miséria, do desemprego e da exclusão étnico-racial.
Percebemos estarrecidos que ao longo desta crise sanitária, o racismo segue desenfreado, alheio às dores das famílias enlutadas pelo coronavírus. Em meio aos muitos números de mortos anunciados diariamente, os crimes raciais são tratados pela mídia até com uma certa naturalidade. No entanto, a tragédia envolvendo o menino Miguel, de apenas cinco anos, não pode ser esquecida. A violência, seguida de morte de João Alberto, dentro de uma rede de supermercados, não pode ser relativizada e muito menos repetida.
Para além da nossa empatia e da nossa solidariedade, todos os casos, de antes e de hoje, de todas as vítimas decorrentes do racismo, devem servir como nosso combustível para exigir do Estado a ampliação das políticas públicas afirmativas.
Necessário, portanto, ampliar as oportunidades de trabalho, para garantir uma maior representação de negros, pardos e indígenas em espaços de poder, assim como viabilizar novos processos formativos nas escolas, nas universidades, nas empresas estatais e nas instituições privadas, que demandam por mudanças radicais em seus discursos e práticas.
Educar para diversidade e combater o racismo devem ser constituídos como os princípios norteadores desde a infância, em casa e no ambiente escolar, afinal, é a partir da educação que conseguimos instituir, de fato, a cidadania entre nós. É no convívio social que devem florescer as primeiras sementes promissoras para o fortalecimento de uma sociedade mais democrática e antirracista.
Para saber mais:
GOES, Emanuelle F.; RAMOS, Dandara O.; FERREIRA, Andrea J. F. Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, 2020, e00278110. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00278. Disponível em: http://www.revista.epsjv.fiocruz.br/upload/revistas/r942.pdf. Acesso em: 30 jun. 2021.
NUNES, Cícera.; SANTANA, Jusciney C.; FRANCO, Nanci. H. R. Epistemologias negras e educação: relações étnico-raciais na formação do(a) pedagogo(a). Roteiro, [S. l.], v. 46, p. e26314, 2021. DOI: 10.18593/r.v46i.26314. Disponível em: https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/roteiro/article/view/26314. Acesso em: 30 jun. 2021.
SANTANA, Jusciney C. Tem preto de jaleco branco? Os primeiros 10 anos de políticas afirmativas no curso de Medicina da UFAL (2005-2015), Maceió: Edufal/ Imprensa Graciliano Ramos, 2017. 218 p.
*Doutora em Educação, professora do Centro de Educação da UFAL; pesquisadora sobre gestão e políticas educacionais; autora do livro Tem preto de Jaleco Branco: os primeiros 10 anos de políticas afirmativas na Faculdade de Medicina da UFAL; colaboradora no projeto de extensão “Identidade afro-brasileira e enfrentamento ao racismo: Construindo novas relações sociais”, vinculado a PRAC/UFPB sobre a coordenação da professora Ana Cristina Silva Daxenberger e do professor Rosivaldo Gomes de Sá Sobrinho.
Edição: Heloisa de Sousa