Paraíba

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Ventre Livre para quem? Desafios das Maternâncias Pretas

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Protesto em denúncia à chacina no Jacarezinho. "Contra o Genocídio: rebelar-se é justo!" - Reprodução
Enquanto não parar o genocídio da juventude negra, não haverá ventres livres de tantas violências

Por Carolina Porto*

A Lei do Ventre Livre tinha a seguinte proposição: os filhes de mulheres escravizadas nasceriam livres, mas permaneceriam sob custódia do dono até completarem 21 anos, a partir de 1871. Como todas as leis dos brancos, no quesito abolição e liberdade ao povo negro, a lenda da lei do ventre livre teve sua sanção, mas não foi de fato sentida por mães-pretas. 

As mazelas vividas pelas famílias negras após cruzar, violentamente, o Atlântico expôs o povo preto a uma desestruturação familiar que, intencional e sorrateiramente, assola, até hoje, essa população em terras canarinhas. A escravidão retirou o direito das famílias pretas assumirem suas funções sociais de mãe, pai e filhe; a separação gerou um lugar de grandes violências e poucas oportunidades de afetos e cuidados consanguíneos. 

Em um dos períodos mais violentos para essa população, a escravidão, as mulheres negras assumiam um lugar de fêmeas reprodutivas e suas "ancas" eram avaliadas a fim de entender se seu corpo seria capaz de produção de mão de obra para o mercado escravocrata. Os filhes das mulheres negras não nasciam seus, apesar de terem sido gerados nas suas entranhas (por vezes, resultado de estupros); seus filhos já tinham dono, os senhores os tratavam como mercadorias negociáveis. 

Por outro lado, também houve muita resistência. O que não foi proporcionado perante a lei, a oportunidade de maternar com liberdade, elas compraram. Há indícios de compras de cartas de alforria dos seus filhos e da sua família por parte dessas mulheres. A carta de alforria era uma das únicas e mais caras chances de manter a família por perto.

O sistema racista, capitalista e patriarcal nos faz crer que, até hoje, es filhes pretes não pertencem a suas mães, mas ao Estado, e devem ser mantidos em trabalhos subalternos semiescravo e escravo, encarcerados ou em caixões. 

O patriarcado, aliado ao capitalismo, que serve ao racismo estrutural, impõe, a essas mulheres, separações de suas crias. São mulheres que deixam seus filhes sob os cuidados de outras mulheres pretas e seguem para tomar conta des filhes das mulheres brancas que terceirizam sua maternidade. As amas de leite são mais comuns na atualidade do que se sabe. Em resumo, as mães pretas têm sob controle a criação e construção des filhes das sinhás saudosistas e, muitas vezes, não sabem como está se dando os dias de suas próprias crias. 

Esse projeto falido de nação ainda expõe essas mulheres-mães-pretas à morte. Não por acaso, no começo da pandemia, foi veiculado nas mídias que a primeira morte no Brasil foi de uma empregada doméstica. Também sabemos o triste fim de Miguel, filho da empregada doméstica Mirtes Renata, quando esta o levou para o trabalho e o deixou sob os cuidados da patroa.

Nunca houve acesso à lei do ventre livre e, enquanto liderarmos o ranking de genocídio da juventude negra, não haverá ventres livres de tantas violências em 2021. As mulheres negras não podem parir em paz, não podem criar e encher de amor suas crias, não podem ver crescer seus rebentos.

A Katlen Romeu não pôde viver, a Katlen não pôde parir. Mirtes pariu, mas não vai poder ver seu erê crescer, nunca mais vai poder botar seu menino no colo, assim como as mães e companheiras negras de Jacarezinho, ou as mães dos meninos de Belfort Roxo. Tiram o direito de amar e receber amor das crias das mulheres negras.

No Brasil racista e genocida, ficamos órfãos de mães e de filhos. De acordo com o mapa da violência, a cada 23 minutos, se mata um jovem negro no Brasil. Toda vez que cai um corpo e uma corpa negre nesse chão, se mata a alma de uma mãe. É morte lenta, que dói como açoite. Quando se mata uma mãe preta, morrem nossas matriarcas e desacalentam-se nossas crianças, desestrutura-se uma comunidade inteira e deixam-se vulneráveis nossas sementes.

Perdemos parte da nossa força motriz de sustentação de base, de estrutura, de ancestralidade quando vemos essas passagens, que são resultado desse projeto de nação que nos mata de fome, sem vacina, sem ar, sem emprego. E, caso ousemos resistir e tomemos o poder, o último recurso é nos tirar na base da bala, como quando ficamos órfãos da matriarca ancestral Marielle, assim como tantas outras.

Segundo Nina Simone, "Liberdade é não ter medo!". Sendo assim, afirmo, categoricamente, que as mães pretas não são livres. Ventre Livre pra quem? 


Referências Bibliográficas:

https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/04/27/violencia-jovens-negros-morrem-mais-do-que-nao-negros-indica-relatorio

https://fenajud.org.br/?p=8060

https://www.geledes.org.br/lei-ventre-livre/?noamp=available

https://www.geledes.org.br/tag/lei-do-ventre-livre/?noamp=available 

https://www.mapadaviolencia.net.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf

 

*Zootecnista, discente de Ciências Biológicas-Licenciatura na UFPB, produtora cultural, integrante da Pachamamá Coletiva de Mães JP e do Movimento de Mulheres Negras na PB. Conselheira do CONSEA-PB representando os povos de terreiro. Mãe preta de Yáomi em marcha contra o racismo e a violência e pelo bem viver.

Edição: Heloisa de Sousa