Por Luanna Louyse Martins Rodrigues*
O assassinato da líder sindical paraibana Margarida Maria Alves foi um dos crimes atribuídos aos integrantes do Grupo da Várzea, conforme sinalizado na parte V do dossiê. No presente texto, tentaremos demonstrar de que forma a atuação da sindicalista em defesa dos canavieiros levou à sua execução, bem como o desenrolar do processo criminal resultante do crime, o qual completa 38 anos nesta semana.
A análise aqui apresentada parte de pesquisa que teve o processo criminal como principal fonte documental, buscando enfatizar as manifestações do poder de mando dos acusados junto à estrutura jurídica, revelando que, ora implícita, ora explicitamente, o poder daqueles apontados como mandantes do crime reverberou no desenrolar processual, pesando sobre o desfecho do caso.
Margarida foi assassinada aos 50 anos de idade em 12 de agosto de 1983 com um tiro no rosto enquanto comia uma espiga de milho na porta de sua casa, observando seu filho brincar na rua. Na ocasião, seu esposo, Severino Cassimiro Alves, assistia TV na sala quando foi surpreendido com o barulho do disparo e deparou-se com sua esposa caída ao chão, esvaindo-se em sangue, já sem vida. A cabeça de Margarida apresentava amplo ferimento, com destruição do crânio e do lado direito da face, provocado pela arma de grosso calibre que seus algozes utilizaram.
Por trás desse disparo e dessa cena bárbara, está uma ampla estrutura que envolve o poder econômico/territorial e a rede de poder político-jurídico que dele resulta, garantindo a impunidade dos grandes proprietários de terra apontados como mandantes do assassinato.
Já na primeira fase investigativa, ficou clara a motivação político-econômica e fundiária do crime, tendo em vista existirem, à fartura, depoimentos apontando as ameaças que Margarida vinha recebendo por parte dos grandes proprietários de terra da região, conforme se vê nos trechos transcritos a seguir:
Acha que os motivos principais da morte de Dona MARGARIDA era porque a mesma como presidente do sindicato orientava os trabalhadores rurais a respeito dos seus direitos trabalhistas; Que acha que os interessados na morte de Dona MARGARIDA são justamente os patrões, proprietários rurais da região de Alagoa Grande e que ela era considerada por eles como inimiga pois sempre esteve ao lado de todos os trabalhadores que necessitassem da ajuda do Sindicato. (Processo nº 182/83, fl. 66).
MARGARIDA vivia recebendo ameaças de quase todos os patrões da região [...] sabe informar que ela vivia recebendo recados principalmente por parte de Dr. AGUINALDO [...] (Processo nº 182/83, fl. 66)
Afirma que é do seu conhecimento que Dona MARGARIDA já havia recebido muitas ameaças antes de o crime ser consumado; [...] Que MARGARIDA já tinha sido ameaçada principalmente por quatro proprietários rurais da região de Alagoa Grande que são: um filho do Sr. LINO MIRANDA [...] que o nome dele é José mais conhecido como Zé Mil [...] um filho do Sr. JOÃO CARLOS DE MELO [...] que o gerente da usina Tanques e genro do Dr. AGUINALDO mandou dizer para Margarida que ela não mexesse nas terras do Dr. Aguinaldo, pois caso contrário ela estaria com os dias de vida contados [...] que esse Dr. BUARQUE é acostumado a passar com o trator por cima das plantações dos moradores de alguns sítios localizados nas terras do Dr. Aguinaldo; Que também é do conhecimento do declarante que o Sr. ANTÔNIO RÉGIS e um filho seu conhecido por CARLINHOS também fizeram ameaças a Margarida [...]. (Processo nº 182/83, fl. 69, grifos nossos).
É do seu conhecimento que MARGARIDA ERA ODIADA POR QUASE TODOS OS PROPRIETÁRIOS RURAIS DE ALAGOA GRANDE PELO FATO DE FREQUENTEMENTE INSTIGAR OS TRABALHADORES A QUESTIONAREM NA JUSTIÇA TRABALHISTA OS SEUS DIREITOS. (Processo nº 182/83, fl.132).
Ademais, tais depoimentos dão notícia de que o crime fora tramado em uma reunião entre agropecuaristas que vinham sendo questionados na Junta de Conciliação e Justiça por questões trabalhistas movidas por Margarida através do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Alagoa Grande. Na época em que foi executada, Margarida movia cerca de 70 ações na Junta de Conciliação e Justiça de Campina Grande contra grandes proprietários da região.
O Padre Luigi Pescarmona, entrevistado por nós durante a pesquisa, relata que, ao saber da reunião que tramava o assassinato, foi até a residência de Margarida contar-lhe do risco que ela corria: “Margarida, a tua vida está ficando do tamanho de nada”, ao que Margarida respondeu: “Padre Luiz, da luta eu não fujo e, se a morte vier, eu aceito”.
Além dos depoimentos, consta nos autos uma carta que Margarida escreveu em resposta ao usineiro Aguinaldo Velloso Borges, o qual lhe mandou recado para que ela “não procurasse casos com as propriedades dele e que tivesse cuidado” (Processo nº 182/83).
Como se viu, os nomes de diversos fazendeiros foram indicados como autores intelectuais do crime ao longo de toda a oitiva de testemunhas. No entanto, os mentores do assassinato, praticamente, não figuraram no processo criminal movido pela Justiça paraibana. Foram denunciados três executores, um copartícipe e um mandante, mas nenhum deles foi condenado.
O delegado responsável pela condução do Inquérito Policial na fase inicial, Francisco Indrusiak da Rosa, afastou-se dos nomes listados nos depoimentos e apontou, como responsáveis pelo crime, dois toureiros desconhecidos e não localizados e um filho de um proprietário de terras da região, apontado como copartícipe. Assim se pronunciou o Ministério Público quando do oferecimento da denúncia:
O crime fora contratado por pessoas que se sentiam incomodadas ou discordavam da atuação da vítima como Presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, adiantando, inclusive, que o preço ajustado fora Cr$ 500.000,00. Infelizmente, as investigações policiais, até o momento, não conseguiram identificar os contratantes ou mandantes, embora ingente e competente [...]. (Processo nº 182/83, fl. 003, grifo nosso).
Anos mais tarde, após nova denúncia motivada por uma queima de arquivo, os nomes dos possíveis mandantes do crime voltaram a aparecer. A viúva de um comerciante prestou depoimento denunciando que seu marido fora executado por falar o que sabia sobre o assassinato de Margarida Maria Alves, trazendo à tona, mais uma vez, a relação entre os grandes proprietários de terra da região e o crime.
Assim se manifestou o filho do comerciante assassinado:
O seu genitor sabia dos autores da morte de Margarida Maria Alves; que quando estava embriagado começava a propalar que os responsáveis pelo assassinato da líder sindical eram os denunciados [...] (Processo nº 372/95, fl. 1.777).
Como desdobramento desse novo fato, ocorreu uma segunda denúncia no processo para incluir o único acusado como mandante que foi levado a julgamento, José Buarque de Gusmão Neto, e um executor, o PM Betâneo Carneiro dos Santos. O patriarca da família Velloso Borges, a esta altura, já havia falecido sem ter sido levado à Justiça para responder pelas acusações.
Mesmo após a nova denúncia, o desenrolar do caso não foi mais alentador. Diversas foram as manifestações de intimidação de testemunha e possíveis aliciamentos de jurados no decorrer do processo. Este levou 18 anos para ter o seu desfecho, desde a abertura do Inquérito Policial até o derradeiro julgamento do caso, tendo sido encerrado sem nenhuma condenação. Nas palavras do Ministério Público:
Ao término do julgamento, quando o douto magistrado sentenciante tornou pública a solução absolutória dada pelo colégio popular, pairou sobre as pessoas que atentamente acompanhavam os trabalhos desenvolvidos em plenário, não apenas um sentimento de pesar, revelado no olhar de incredulidade que sustentavam, mas a convicção de que no Brasil não existia justiça para os ricos, pois estes, além de advogados astuciosos que sabem lidar com os meandros e as falhas da lei, também podem usar do poderio econômico para comprar a consciência de outros tantos e manipular um julgamento. Eis porque, desde então, os comentários sobre os valores que teriam sido disponibilizados e a quantidade de jurados que teriam sido abordados não param de surgir [...]. (Processo nº 372/95, fl.3.660, grifo nosso).
*Doutora em Geografia pela UFPB. Atualmente é professora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão - IFMA.
Edição: Maria Franco