Luiz Gama merece não apenas o título de doutor, mas também o reconhecimento pelo grande público
Por Surya Aaronovich Pombo de Barros*
Em nós, até a cor é um defeito.
Um imperdoável mal de nascença,
o estigma de um crime.
Mas nossos críticos se esquecem
que essa cor, é a origem da riqueza
de milhares de ladrões que nos
insultam; que essa cor convencional
da escravidão tão semelhante
à da terra, abriga sob sua superfície
escura, vulcões, onde arde
o fogo sagrado da liberdade.
(Luiz Gama)
Em 29 de junho deste ano, a Universidade de São Paulo concedeu a Luiz Gonzaga Pinto da Gama o título de doutor honoris causa, honraria conferida “a personalidades nacionais ou estrangeiras que tenham contribuído, de modo notável, para o progresso das ciências, letras ou artes; e aos que tenham beneficiado de forma excepcional a humanidade, o País [...]”. Ele é a primeira pessoa negra brasileira a receber o título nesta instituição. A iniciativa partiu de Dennis de Oliveira, um dos poucos professores negros da universidade, foi acolhida pelo Conselho Universitário e celebrada por muita gente pelo efeito simbólico de tal ato. Estudado em diferentes campos acadêmicos e aclamado pela militância negra, Luiz Gama merece não apenas o título de doutor, mas também o reconhecimento pelo grande público, que só tem a ganhar se ele for lido, escutado e divulgado.
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Luiz Gama nasceu em 1830, em Salvador, filho de uma africana livre e um branco pertencente à elite local, num período de intensas rebeliões escravas e negras na Bahia. Sua mãe, a mítica Luiza Mahin, estava envolvida nas revoltas, e por isso o deixou aos cuidados do pai quando precisou fugir da repressão, indo para o Rio de Janeiro, de onde não se soube mais notícias dela. O homem, ainda que registrado como “pai extremoso”, que cuidara dele e o batizara na religião católica, após alguns anos o vendeu para um traficante de escravos quando o menino tinha dez anos de idade. Depois de um longo percurso, passando por Rio de Janeiro, Santos e Campinas, ele foi levado para a capital de São Paulo, onde se radicou, tendo permanecido escravizado por um alferes até os 17 anos de idade. Essa primeira experiência - nascido livre e ter sido vendido pelo próprio pai -, além da observação do cativeiro e as outras situações pelas quais passou, foram cruciais para a construção desse sujeito.
Nesse período, a província de São Paulo, até então pouco importante, começava a modernizar-se, e um desses sinais foi a criação da Academia de Direito em 1827. Como outras pessoas negras, Luiz Gama não assistia impassível às mudanças, e tinha um olhar aguçado para a injustiça da escravidão e das relações entre brancos e negros. Ele aprendeu a ler e escrever com um estudante de Direito, com quem fez amizade, além de ter se empregado em um Colégio, onde ouvia atrás das portas das salas de aula e melhorava aquelas habilidades.
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Depois disso, Luiz Gama trilhou um caminho extraordinário. Libertou-se, serviu ao exército por alguns anos, trabalhou na Secretaria de Polícia de São Paulo, escreveu na imprensa por décadas, publicou um livro de poesias - Primeiras trovas burlescas de Getulino (1859), participou como figura central no movimento abolicionista, foi maçom, fez parte do movimento republicano e, a partir dos anos 1860, atuou como advogado autodidata, defendendo pessoas pobres e negras, especialmente escravizadas, até sua morte. Estima-se que ele tenha conseguido nos tribunais a liberdade de 500 pessoas.
Luiz Gama casou-se com uma mulher negra, Claudina Fortunata Sampaio, teve um filho, Benedito, e fez parte de redes de solidariedade, amizade e luta com outros intelectuais negros. Ele morreu em 1882, sem ver a Abolição da Escravidão (1888) ou a Proclamação da República (1889), ideais aos quais dedicou a vida. Sua morte causou comoção, sendo registrada como um momento em que o povo, pessoas negras, escravizadas, libertas, autoridades, intelectuais foram às ruas prestar homenagem ao célebre homem negro.
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Inúmeros trabalhos acadêmicos foram e vêm sendo produzidos sobre ele. O Portal de Literatura Afro-brasileira LITERAFRO, da Universidade Federal de Minas Gerais, oferece material, textos do próprio escritor e referências acadêmicas sobre Luiz Gama.
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Neste mês de agosto de 2021 foi lançado o filme Doutor Gama, de Jefferson De. O diretor é um dos mais importantes cineastas em ação, fazendo parte como teórico e como realizador do chamado cinema negro brasileiro. Diretor de obras fundamentais para a discussão sobre o Brasil contemporâneo como Bróder (2010) e M8 - Quando a morte socorre a vida (2018), em Doutor Gama, Jefferson De presta homenagem a esse personagem do século XIX que fala diretamente ao nosso tempo. A denúncia sobre o racismo que estrutura a sociedade brasileira, a iniquidade da escravidão, a riqueza construída pela exploração do trabalho de outros, a defesa da humanidade do escravizado, a consideração da lei como instância central na diminuição da desigualdade estão ali e aqui.
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Além de ler textos e assistir o filme sobre Luiz Gama, é possível escutar sobre sua atuação. História Preta é um podcast produzido pelo historiador Thiago André, que tem como objetivo refletir sobre “memórias históricas da população negra no Brasil e no mundo” a partir de muita pesquisa, sendo apresentado com linguagem acessível e atraente. O episódio Legítima Defesa, sobre o papel de Luiz Gama no movimento abolicionista, é um primor.
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Para terminar, cito a advertência de Lígia Fonseca Ferreira, uma das principais estudiosas de sua obra: “É verdade que o nome de Luiz Gama se cerca de interesse devido à sua fascinante e singular história de vida, digna de uma ‘novela’, porém vítima de outras ficções, inclusive historiográficas. Porém, restringir-se a este aspecto, esquecendo seu legado - sua voz, sua palavra - seria enxergá-lo como mero personagem, figura imaginada na criação e no discurso de outrem; seria, em suma, confiná-lo ao papel oposto ao que buscou para si: a autoria e a autonomia para (se) dizer e agir, razão pela qual dispensou padrinhos e porta-vozes. Mas seria enganoso e redutor apreendê-lo apenas por meio de sua identidade negra. Esse traço se combina a um leque de outras identidades (social, política e profissional) e de valores assumidos em meio aos riscos por ele enfrentados nas areias movediças de um país àquela altura mergulhado em paradoxos e ainda desnorteado na busca de uma identidade política e racial” (2015, p. 236).
*Historiadora, professora de Política Educacional, Educação e Relações Raciais e História da Educação/UFPB. Email: [email protected]
Edição: Heloisa de Sousa