Paraíba

A ARTE E A VIDA

Artigo | A moral da história da fábula da cigarra e da formiga: qual sociedade queremos?

"Na chegada dos maus dias, a Cigarra é simplesmente abandonada a morrer pela Formiga"

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Palhaço Obom em atuação. - Arquivo

“O analfabetismo estético, que assola até os alfabetizados em leitura e escrita, é perigoso instrumento de Opressão” 

(Augusto Boal, Estética do Oprimido) 

As fábulas, como o teatro, ou qualquer outra manifestação artística, não são simplesmente para o deleite, apesar de servirem, e muito, para isso. Durante a pandemia, nossas músicas, filmes, espetáculos favoritos, nos alimentaram, fizeram chorar e rir, proporcionando alívio: fora a companhia de alguns gatos, que foram adotados, como vindos do além... 

Além da finalidade da diversão, ou da arte pela arte, como espetáculo puro, se é que isso existe, a arte sempre está, de uma maneira ou de outra, embebida de uma mensagem que pode ser conservadora ou transformadora. Despretensiosamente, talvez, nossas mães, ou professoras, nos contaram a fábula da cigarra e da formiga. Escrita por Esopo, escritor grego, no século VI da Era Comum, e posteriormente compilada por Jean de La Fontaine, francês, no século XVII. A história claramente atribui ao Gafanhoto (no original), ou à Cigarra, a Arte como parte da Preguiça. Esta conexão já diz muito, porque o trabalho árduo e remunerado é superior, ao passo que, quem canta e dança, e se diverte, não trabalha, e será penalizado por isso. Esta dicotomia marca algo profundo, que, na chegada dos maus dias, a Cigarra é simplesmente abandonada a morrer pela Formiga. Nos contos atuais, ela foi reformulada, mas no geral a mensagem é a de que a Formiga, benevolente, recebe a Cigarra em sua “casa” durante o inverno, que cobra essa estadia com a Arte da Cigarra, mais como uma benevolência do que com respeito ao fazer artístico. 

Entender artistas como preguiçosos, irresponsáveis e, não só isso, alegar que a Arte é algo que não se deve investir, porque “não dá camisa pra ninguém”, proporciona um alinhamento com a ética protestante, do trabalho árduo e da recompensa com riqueza, do que significa valor para o capitalismo e proporciona ao prazer um olhar de condenação. A fruição de nada vale. Além de desprezar o esforço enorme de controle de corpos, notas, cordas, que realizam os artistas. 

Essa desvalorização chega nas escolas, relegando aos professores e professoras de Arte um espaço desprezado, já que o que importa é Português e Matemática. Portanto, mesmo que alguns alunos se interessem, e possivelmente, os que têm mais dificuldades com as outras “linguagens”, e tenham mais facilidade com outros letramentos (que são as diversas formas de ler e interpretar o mundo, não só as “escolares”), como ritmos, danças, melodias, ou cores, serão possivelmente desestimulados. 

Talvez possamos reverter esse lado da história, começando por afirmar, como Boal, que a Arte faz parte fundamental da vida, porque ela nos faz, no mínimo, ajudar a carregar o fardo da vida, mas, muito além disso, ela pode nos identificar, independente de ganharmos dinheiro com ela. Uma pessoa pode ser poeta e, ao mesmo tempo, advogado, e talvez o que alimente mais sua alma seja a poesia, e pode ser que as pessoas o conheçam mais como poeta do que como advogado, ainda que pague suas contas com a advocacia. 

Transbordando minha própria existência: o encontro do 'eu' com o social

Na minha história pessoal, o lápis e o pincel se fizeram presentes como instrumentos de identidade, a partir de uma criança sem outras habilidades, e se descobrir reproduzindo ou criando imagens, foi muito libertador, identificador. Quantas pessoas você conhece que tem um violão, ou uma flauta, ou qualquer outro instrumento que fala com eles, que ressoa neles, que transborda sua existência, fazendo sua vida extremamente mais potente e significativa, inclusive para os outros? 

Mas a Arte foi um tanto quanto sacrificada em minha vida, ou sofreu uma pausa, num momento de definição e de necessidade de ganhar dinheiro para “virar” alguém, só que recuperada recentemente, a partir de outras linguagens artísticas. E aí, se descobre que todo artista pode ser multiartista, e que necessariamente, não precisa ser excepcional em todas as expressões. Uma série de coisas simples formam o extraordinário. E isso é verdade também para quem não se considera artista, mas também pode tentar fazer balé após os 30 anos, pintar após os 40, ou mais, somente por fruição.  

Assim foi a descoberta do palhaço, como algo que despretensiosamente foi buscada, mas que eu não sabia que falava tanto de mim. Por descobrir o sombrio, o ingênuo, o ridículo, e transformar tudo isso em graça, em aceitação, em dança, em beleza, em riso. E proporcionar esse show de humanidade para outros, que se identificam e riem de si mesmos. 

Mas este palhaço sai do imaginário e das oficinas para encontrar o social, a partir de um projeto de extensão universitário, aqui na Paraíba, João Pessoa, para responder a uma pergunta: como trabalhar a violência em ambientes nomeados como violentos, por serem marginalizados? E aí começa um relacionamento com as pessoas dos bairros do Cristo e do Rangel, em conversas com lideranças, participando de orçamentos participativos, ida a CAPS/AD, observando como as crianças brincavam no recreio de uma escola. Inicialmente, sem saber o que ou como fazer, vão surgindo palhaços e palhaças, brincantes, que aparecem primeiro em asilo de idosos, depois, nas escolas, tentando falar linguagens do amor, do lúdico, do acolhimento. E isto se deu com um encontro pessoal e coletivo com a humanidade de nós todos. 

Encontrar-se é se ver na criança, mesmo que muitas vezes digamos que não gostamos delas, mas possivelmente porque não estamos em paz com as nossas diversas crianças interiores que nos habitam, com nossas dores iniciais. E nesse ponto, é importante trazer a lógica do Cuidado de Si e da Construção de Si, presente no último livro de Foucault, a partir de um pensamento que lide com a questão da necessidade de ir além do negar-se a si mesmo, fruto do pensamento ascético religioso cristão, e partir para um ascetismo que parte da escolha das pessoas, para construir-se a si mesmo, trabalhando corpo, mente e espírito sobre o que se deseja ser. Afinal, somos um caminhar, uma construção em movimento, e isto dura a vida toda. Esse ascetismo por escolha pode proporcionar emancipações que superam a vigilância e o controle social, o que é incrível. 

Alfabetizar esteticamente é fundamental

Um aspecto importante que pode ser gerado, a partir da construção de si a partir da Arte, é pensar no desenvolvimento sensual proposto por Marcuse; essa sensualidade abrange todos os sentidos, e essa lógica estética encontra-se em Mignolo, que proporciona o resgate decolonial da estética como sentir, e não de valorar qualquer tipo de Arte como boa ou má. Segundo Kant, é o que direciona a ver a arte europeia como representante do Belo, e a arte do Sul Global como simples arte popular, não erudita, menor. Por isso, alfabetizar esteticamente é fundamental, na busca do conhecimento e da redescoberta e reconexão do corpo, negada pela lógica ocidental, de separação de corpo e mente, considerando o corpo como profano. 

Marcuse projeta a emancipação sensual como uma possibilidade, contrário ao pensamento de Freud, onde os civilizados devem viver se contendo, diria eu, se anestesiando e podando suas mais vivas formas de existência e sentido (sentido como direção e como sensação). 

Portanto, reintegrar corpo e mente como uma só coisa, trazer o sentir como parte da vida, a partir de exercícios que criem momentos de repensar posturas opressoras que a sociedade nos induziu a tomar, principalmente nas pessoas que têm posições subalternizadas, em regiões periféricas, é fundamental como parte de emancipações individuais e coletivas. E é fundamental conectar isso com formas diversas de expressão, a partir das inúmeras formas de expressão artística, oferecendo opções dentro e fora do ambiente escolar e proporcionando a identificação com outras linguagens sensuais a partir de experimentações estéticas das crianças, jovens e adultos. 

Atuação do projeto de Arte nas escolas

Levando em conta os aspectos abordados anteriormente, a atuação de nosso projeto nas escolas proporciona o pensar e utilizar a Arte como desafiadora de espaços rígidos de disciplina e de afetos tristes, que constrangem a ação; proporcionando afetos alegres por meio de encontros com brincantes e palhaças e palhaços, gerando espaços novos. Inicialmente, os profissionais das escolas podem estranhar essas abordagens, mas posteriormente, observam o quanto é positivo, e começam a aplicar a lógica da ludicidade em seus espaços de ensino. 

O nosso grupo também fez peças teatrais ou de palhaçaria que tratavam da violência no bairro, a partir de depoimentos das pessoas, e algumas delas foram ver suas histórias serem encenadas. Após isso, foram realizadas rodas de conversa, que proporcionaram o pensar de suas próprias violências e as possibilidades de transcendê-las. 

Outra forma de apoio na construção das individualidades e de processos emancipatórios é o oferecimento de capacitações em cursos de palhaçaria, circo, teatro, teatro do oprimido, moda, dentre outras atividades. Isso, nos enche de alegria que pessoas que participaram de nossos cursos criaram grupos de palhaçaria e de teatro, cumprindo a ideia inicial de se expressar por meio do sensível, do corpo, da construção de um texto próprio que, muitas vezes, não é escrito. 

Durante a pandemia, outras formas de interação foram buscadas, a partir de pequenos vídeos no WhatsApp, seguindo uma via crucis que passa de nós para as professoras, depois, aos pais, e chega às crianças. Com isso, fizemos tutoriais de maquiagem de palhaças e palhaços, que foram reproduzidos pelas crianças, de confecção de brinquedos com materiais caseiros, como a boneca Abayomi, símbolo de resistência negra, bem como palestras sobre Cordel, Nordeste, Cultura Popular e Folclore, e Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Todas as pessoas que conheço desejam retornar ao estilo antigo de vida, sem máscaras e com toques, abraços, afagos. Mas aos artistas, e aos sensíveis, cabe pensar formas de tocar, de sensibilizar, de produzir lágrimas e sorrisos, mesmo que à distância. 

Um beijo no coração de todas as pessoas que ainda são de carne, osso e sentimentos. 

 

* Paulo Kuhlmann, professor universitário e Palhaço Mancada Obom

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Heloisa de Sousa