...o mais importante julgamento sobre direitos indígenas
Por Surya Aaronovich Pombo de Barros*
Sem palavras não poderíamos ser gente. Nosso povo recebeu a palavra de vida do criador, e isso nos diferencia dos bichos. A dos bichos é a outra palavra.
(Micheliny Verunschk)
Apesar do silêncio da grande imprensa, as redes sociais e mídias alternativas circularam durante semanas cenas de manifestações musicais indígenas vindas de Brasília entre o final de agosto e o início de setembro deste ano. Uma música ancestral, emocionante, ajudou a divulgar a Luta pela vida, o maior acampamento indígena da história foi montado em Brasília, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Durante semanas, cerca de 5 mil pessoas, de 117 povos vindos de todas as regiões do país ocuparam a Capital Federal para protestar contra a agenda anti-indigenista do atual governo federal e pressionar o Supremo Tribunal Federal em relação ao que é considerado o mais importante julgamento sobre direitos indígenas. O julgamento sobre o “marco temporal” deve decidir o futuro das demarcações de territórios indígenas e, consequentemente, o futuro das próximas gerações. Dando continuidade ao acampamento, entre 7 e 11 de setembro, 4 mil mulheres de diferentes povos realizaram a 2ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, em Brasília, no que foi chamado de Primavera Indígena. O julgamento foi adiado indefinidamente, e a resistência continua.
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Esses eventos, as imagens veiculadas, a preocupação com o futuro e o fato de ser uma obra excelente me provocaram a indicar o livro O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk, Companhia das Letras, (2021). Trata-se de uma obra de ficção, inspirada num acontecimento real. No início do século XIX, os visitantes Johan Baptist von Spix (zoólogo) e Carl Friedrich von Martius (botânico) passaram três anos circulando pelo Brasil. Em 1820, voltaram para Munique levando nas malas anotações, desenhos, pedras preciosas, plantas nativas, animais e duas crianças indígenas. Batizadas como Isabella Miranha e Johan Juri, morreram pouco depois de chegar à Europa.
A partir desse evento, Verunschk realizou um extenso trabalho de pesquisa, aliado a uma sensibilidade ímpar, ficcionalizando a história dos agora renomeados de Iñe-e e Juri. Acompanhamos a saga a partir do ponto de vista das duas crianças, arrancadas de suas terras e gente, enviadas para um lugar longínquo, assustador, levadas para a morte. O livro alterna esse momento e o século XXI, realizando uma bela ficção histórica.
Nesse momento em que estamos às vésperas da comemoração do bicentenário da Independência, em que estamos à espera do julgamento do “marco temporal”, em que se a Apib denuncia o presidente por genocídio no Tribunal de Haia, o livro O som do rugido da onça ajuda a pensar o Brasil a partir de uma narrativa contra-hegemônica sobre a relação entre colonizadores e povos originários. E, mais do que isso, fala sobre nossa sociedade hoje.
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Existem muitos autores e autoras indígenas, como Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Daniel Munduruku, Julie Dorrico e outras e outros, e considero a leitura de suas obras como fundamental nesse processo de repensar o Brasil.
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Para terminar, sugiro conhecer a exposição de arte indígena Véxoa, disponível no site da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Enquanto se surpreende com a arte contemporânea realizada por pessoas de diferentes povos, aproveite para ouvir o álbum Ñande Reko Arandu - Memória Viva Guarani. Trata-se da gravação de cânticos de crianças guarani, para que possamos terminar com o mesmo grau de emoção que as cenas de músicas do acampamento Luta pela vida nos causam.
*Historiadora, professora de Política Educacional, Educação e Relações Raciais e História da Educação/UFPB. Email: [email protected]
Edição: Heloisa de Sousa