Paraíba

Coluna

Os movimentos sociais e a luta pelo direito à cidade

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Moradores de ocupação protestam por direito à moradia
Moradores de ocupação protestam por direito à moradia - Giorgia Prates
A moradia se destaca entre as demandas por direitos porque ela é uma conquista mais fundamental

Por Rafael Faleiros de Padua*

As cidades brasileiras evidenciam em sua paisagem imensas desigualdades sócioespaciais. Essa paisagem já nos aponta para o fato de que vivemos numa sociedade que não somente é desigual, mas que reproduz desigualdades. O espaço é produto e obra de sua sociedade e no contexto brasileiro revela-se uma realidade em que uma parcela menor da população concentra privilégios e uma grande parcela majoritária da população que vive graus diferentes de déficits de direitos. A desigualdade é concretamente vivida na cidade, nas formas de habitar, no se mover pela cidade, no se alimentar, no se vestir, nos modos de trabalho, no acesso à educação e à saúde, nas formas de lazer, enfim, em todos os atos cotidianos e nos espaços e tempos que envolvem a vida em sua reprodução concreta. 

Uma evidente violência estatal garante que as parcelas mais oprimidas da sociedade não se levantem contra esse estado de coisas. Ao mesmo tempo, há um mascaramento das lutas cotidianas por direitos pelos meios de comunicação hegemônicos. Há, portanto, um estratégico mascaramento dos conflitos, que não têm como serem escondidos, pois eles se evidenciam com mais ou menos força na própria paisagem e no dia-a-dia da cidade. Precisamos ressaltar que há, cotidianamente, muitas lutas por direitos na cidade, organizadas por movimentos sociais. As lutas por direitos não aparecem frequentemente nos meios de comunicação e, quando aparecem, geralmente são ideologicamente desqualificadas porque colocam o dedo na ferida da produção da desigualdade, que é o não acesso à propriedade privada da terra para grande parte da população.

Os diversos movimentos sociais urbanos e rurais lutam, de modo geral, pelo acesso à terra de trabalho e de vida, pela moradia, por educação de qualidade, pelo fortalecimento do sistema de saúde, enfim, por condições satisfatórias de vida para todos. Ao realizarem suas ações, os movimentos explicitam para toda a sociedade as extremas dificuldades de vida de grande parcela da classe trabalhadora, que não tem direitos básicos conquistados. Ao mesmo tempo, eles revelam os fundamentos da produção da desigualdade, que se situam no não acesso à propriedade privada da terra e dos meios de vida. Nesse sentido, quando ocupam uma terra improdutiva no campo ou um imóvel desocupado no centro da cidade, os movimentos estão denunciando para toda a sociedade a concentração histórica da propriedade e lutando por direitos básicos para uma vida com dignidade.

Na cidade, os movimentos fazem suas lutas reivindicando os mais diversos direitos que são violados para as parcelas mais pobres da população, com uma centralidade na luta pela moradia. A moradia se destaca entre as demandas por direitos porque ela é uma conquista mais fundamental, é uma garantia necessária para que se possa avançar para outras lutas por direitos. No limite, ao contestar na prática os fundamentos perversos de reprodução da sociedade que reproduz violentamente a desigualdade, os movimentos sociais revelam em seu horizonte a luta pelo direito à cidade. 

O direito à cidade é uma noção que foi elaborada pelo filósofo francês Henri Lefebvre, no contexto das lutas estudantis e operárias do maio de 1968 em Paris. Para ele, a urbanização se colocava, já a partir daquele momento, como uma condição histórica que avançava rapidamente em escala planetária e colocava novas questões concretas para a realização da vida. As lutas sociais se realizavam, já naquele momento, como lutas pelo espaço, pelo uso da cidade, por um espaço de apropriação para além dos constrangimentos da lógica da mercadoria. A noção de direito à cidade proposta por Lefebvre tem, portanto, um sentido revolucionário, revelando a necessidade de transformação radical da sociedade e, consequentemente, do seu espaço da vida. É, nesse sentido, um horizonte utópico que orienta as lutas urbanas. 

Hoje, as lutas concretas parecem mais focalizadas, específicas, por moradia, por saneamento, por educação e saúde, etc. Há um conjunto de emergências, de reivindicações de direitos básicos para a vida com dignidade, indicando que estaríamos um pouco distantes da noção de direito à cidade como um horizonte utópico de transformação radical do espaço urbano e da vida, que não se reduz à soma de direitos parciais. No entanto, as lutas concretas, ao lidarem com as necessidades mais urgentes, carregam nelas a possibilidade de uma compreensão mais ampla da cidade como um lugar de realização plena da vida. A cada luta enfrentada, os movimentos sociais repõem a esperança e a possibilidade de uma cidade que seja realmente um lugar de reprodução da vida em suas potencialidades. Outra questão importante é que, ao se colocar na rua, no espaço público, ao evidenciar suas pautas e realizar suas lutas, os movimentos estão apontando para uma cidadania mais concreta, que não simplesmente delega para representantes as suas pautas, mas que evidencia diretamente, na rua, as suas reivindicações. Há, assim, nos fundamentos das lutas pelo espaço, uma contínua reposição do direito à cidade como um horizonte utópico.

*Professor do Departamento de Geociências da UFPB, coordenador do Projeto de Extensão “Em busca do direito à cidade: ações e debates sobre as lutas urbanas” e participante do FERURB-PB

Edição: Heloisa de Sousa