Poetisa é a mãe, poeta termina com A, se alguém tiver que mudar, que vire poeto
Alice Ruiz
Ontem, dia 20 de outubro, é considerado o dia do poeta. Segundo a Biblioteca Nacional este dia é celebrado em razão do Movimento Poético Nacional, que surgiu na mesma data, em 1976, na casa do jornalista, romancista, advogado e pintor brasileiro Paulo Menotti Del Picchia. Entretanto há um ponto que sempre incomoda às que não se reconhecem no mito da universalidade: o artigo.
Mas porque é tão importante que falemos nisso? O século XXI é o período marcado pela transmissão e circulação de produção literária de autoria feminina, através da qual a Literatura exerce seu papel de colocar no centro as representações sociais por razão da semelhança e mimese da vida social, a partir do qual tanto quem escreve quanto quem lê se sentem contempladas (e contemplados) na obra literária. Por muito tempo mulheres necessitaram usar pseudônimos masculinos para poder publicar seus pensamentos. Hoje sabemos que há uma consolidação da mulher no espaço editorial firmada na liberdade temática. Liberdade esta, perpetuada na resistência feminina em territórios que foram, por muito tempo, exclusivamente masculinos.
A intenção não é criar um mal estar entre em relação ao dia comemorativo, mas dar vez à escrita feminina, principalmente quando universalidade sempre beneficiou um gênero. Sabemos que a sociedade brasileira é fruto das influências patriarcal e androcêntrica e tem como característica o seu persistente silenciamento da voz feminina, não permitindo o registro da vida e da histórias das mesmas, negando-lhes, assim, direitos de serem perpetuadas pela memória de sua expressão literária. Ao trazer esse debate para essa data comemorativa, evidenciamos o que muitas vezes passa despercebido: Poeta não tem gênero.
A literatura é aqui entendida como elemento importante na construção da identidade cultural que revela como a sociedade é caracterizada político-socialmente. Diante disso, não podemos deixar de considerar que estamos num momento em que há um grande avanço a respeito dos direitos conquistados pelas mulheres: desde as mais tenras manifestações de cidadania à visibilidade enquanto artista.
Entretanto, apesar dos avanços, ainda vemos resistência de parte da sociedade conservadora. Há um incômodo, no que tange espaços historicamente masculinos, quando o destaque torna-se especialmente feminino. Mulheres, conscientes de suas conquistas e direitos, resultados de lutas e de enfrentamentos desde as suas ancestrais, reagem e reivindicam espaços e reconhecimentos que por muito tempo beneficiaram os homens e fortaleceram o silenciamente de suas [nossas] vozes.
A liberdade de ir, vir e se expressar consolidou uma produção literária heterogênea – composta por pessoas cis, trans, não binárias – e contribuiu para o fortalecimento de “comunidades” leitoras que possuem os mesmos valores, ideologias e visão de mundo. As autoras do século XXI são conscientes de suas experiências de vida, e muitas vezes utilizam-se da literatura para refletirem sobre sua vida ou de outrem, compartilhando as mais plurais vivências, com os pés fincados no feminismo da 4ª onda ou das diferenças, das minorias. E neste 20 de outubro, dia de poeta, não poderíamos deixar de dedicar esse artigo às mulheres que fazem a poesia, em especial a poesia paraibana, que é entendida aqui, da mesma forma que o pesquisador José de Souza Campos Júnior definiu, como mulheres que vivem e escrevem dentro do contexto de produção neste território paraibano.
Mas o que seria poeta? Poeta é antes de tudo uma pessoa trabalhadora, que usa as palavras como instrumento de transformação do mundo. Assim como disse a escritora russa Marina Tsvetáeva, poeta é quem sente; quem é multiplicado por mil e que possui inúmeras peculiaridades; É quem ultrapassa o limite da alma. É também quem, através do texto poético, ensina a enxergar o mundo sob outra ótica e ensina a ver o que sempre foi banal como se fosse a primeira vez, lidando com a imitação da imitação da Verdade, porém se afastando dela em três graus, como afirmava Carlos Felipe Moisés. Em resumo, seu ofício é captar os detalhes da vida cotidiana fazendo saltar aos olhos pequenos espetáculos do efêmero, como já disse Alice Ruiz.
Para o dia 20 de outubro, exaltemos as poetas que, com sua lente, transcrevem o mundo real na forma extraordinária, trazendo o amor, a dor e sua própria existência como elemento poético. Permitindo que esses elementos sejam seu instrumento de ressignificação do mundo, da verdade. Pois poeta é quem sente as singelezas na máxima potência, buscando traduzir o absurdo para os olhos nus da humanidade. Assim, nos solidarizamos às suas sensibilidades e agradecemos pela partilha do absurdo. Pois ser poeta é estar no mundo redesenhando o mundo; aprendendo a sobreviver rescrevendo-o; partindo-se em mil para que a poesia brote, pois...
"A Poesia Está...
na ponta da língua
da língua do dedo
o dedo da fonte
na fonte, o cerne
o cerne da flor
à flor da pele."
Clareanna Santana
*Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGA), da Universidade Federal de Pernambuco e poeta
**Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL), da Universidade Federal da Paraíba e Professora do Instituto Federal do Sertão Pernambucano, líder do grupo de pesquisa LEA-BRASIL.
Edição: Cida Alves