Paraíba

Coluna

Colonização, supremacia cultural e o império da fome no Brasil

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Vítima das desigualdades sociais e do agronegócio, povo Guarani-Kaiowá também resiste à fome. - Lunae Parracho/Repórter Brasil
A fome também é resultado desta cultura da marginalização, da exclusão, do silenciamento

Por Alexandre Cesar Cunha Leite*

É de conhecimento geral que boa parte dos problemas existentes na economia, na política e, consequentemente, na sociedade brasileira vêm dos processos formativos do país. É o que se denomina comumente por problemas estruturais. Vícios derivados da colonização. Vícios que não foram devidamente enfrentados pela sociedade brasileira que sempre voltam para nos assombrar. A força colonizadora deu o tom da desigualdade. 

Como bem apontou Raymundo Faoro em sua obra mais conhecida, Os Donos do Poder, a junção de uma elite acomodada que vivia de apropriar riqueza gerada por outros (tanto em âmbito doméstico quanto externamente) com uma estrutura de Estado patrimonialista, capturada pelos interesses privados, impregnou a constituição da nação brasileira. Daí derivam a distinção, a segregação, os particularismos, o terrível senso de excepcionalidade que é apropriado por uma classe dominante no país que nasce. 

É também devido a essa base que nasce um país cuja cultura dominante já está estabelecida. Cultura essa um tanto agressiva, que, gradualmente, com o passar dos anos, vai extinguindo as demais culturas existentes, sejam as originais sejam aquelas dos povos que estavam diretamente associados ao surgimento da nação. A base europeia transforma as demais culturas em marginais, forçando-as à adaptação ou ao esquecimento. 

Não por acaso, medidas como a Lei 10.639 /2003 fazem-se necessárias. A Lei é aquela que, em linhas gerais, estabelece como obrigatório, no ensino fundamental e médio, seja na rede pública ou privada, o ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira. É a Lei que reconhece a contribuição e a luta do povo negro em prol de melhores condições para a formação de um país. É a mesma lei que estabelece o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. 

Sim, foi preciso uma lei para reconhecer a contribuição e a luta do maior contingente populacional na origem do país. Foi necessária uma lei para reconhecer que o país destino do maior número de escravos negros de toda a história do comércio escravagista colonial deveria reconhecê-los como parte da história do surgimento do Brasil. 

Mas o reconhecimento da exceção não para por aqui. Alterando o previsto na Lei 9394/1996, a Lei 11.645/2008  acrescenta a obrigatoriedade, nos mesmos estabelecimentos, da História e Cultura Indígena, destacando o caráter de exceção que requer uma inclusão constituída por força de lei. Detalhe importante, ainda se registra nas escolas uma baixa adesão, apesar das referidas leis, à inclusão dos conteúdos supracitados. 

Mas o leitor deve estar se questionando: onde será que ele quer chegar com essa exposição? E eu respondo: permita-me continuar a construção do argumento e você verá o quanto a constituição de uma cultura dominante nos afeta nos dias atuais. 

Na essência das culturas afro e indígena, que se tornaram marginais, tidas como excêntricas, como registram alguns livros sobre a cultura afro (ou até mesmo “demoniadas”, como se vê nos registros históricos de Câmara Cascudo e nos Sonetos de Gregório de Matos), há o entendimento de que a Terra (no sentido de espaço planetário de vivência) era sábia e sagrada. Nestas culturas, a Terra é local de existência, que possui sua própria força vital. A conexão dos moradores desta Terra encontra-se nos seus elementos formativos (a essência de tudo, conforme Aristóteles), os elementos da natureza. É essa Terra que nos alimenta, que nos serve de abrigo, que nos serve de moradia temporária. 

Tomando este entendimento, estragar o nosso espaço de vivência, ou seja, depreciando e deteriorando as condições da moradia, estamos matando nossa fonte de energia, uma vez que essa energia é um contínuo processo de troca. Queimar e derrubar florestas, matar os rios (sim, o termo é matar), poluir, extinguir vidas é esvaziar a existência. É o que deveria ser debatido em Glasgow na COP 26. É extinguir a fonte de vida, energética e material, a ponto de não mais sermos alimentados por ela. 

Compreende que ao marginalizar esses entendimentos da vida, registrados nas essências culturais afro e indígenas, estamos perdendo interpretações sérias sobre nossa estada nesse planeta? 

A nossa base cultural vigente e dominante vigora fortalecendo os argumentos do desenvolvimento que privilegia uma pequena parcela populacional, fortalecendo, sobretudo, a sua condição de reprodução. E para que essa condição de reprodução vigore é necessário expropriar, subtrair, reduzir ao mínimo a existência de uma enorme parcela populacional. Aquela mesma fonte colonizadora cria e alimenta a desigualdade. Desigualdade em todos os níveis constitutivos. O estabelecimento da cultura dominante fortalece este entendimento e este modus operandi, e direciona a ação daqueles que a absorvem passivos. É derivado desta base cultural que a desigualdade é reforçada. 

É também desta base cultural que a meritocracia é sustentada, alegando que os perdedores, oprimidos, segregados e famintos precisam se dedicar mais para alcançar o “sucesso”. Desconhecem as condições de partida destas pessoas e, ainda assim, se constituem como julgadores e como conselheiros da superação. Como marginalizamos, o entendimento de troca entre nós, seres viventes e com usufruto desta Terra, sucumbimos ao discurso dominante, propagado por aqueles que já estão sentados na poltrona do “sucesso”. 

Logo, na base do desenvolvimento destes vitoriosos, entre outros fatores, está a existência dos perdedores. Aqueles que, como argumentou Raymundo Faoro, serão os expropriados, que garantem a existência da classe que vive alimentada pela imposição dos seus interesses sobre os demais, inclusive sobre o Estado/governo. 

E como ficam os que estão largados, abandonados, famintos com as mãos estendidas, pedindo por ajuda e contando com a misericórdia dos abastados? Dependentes. Dependentes de uma política que busque reduzir a sua vulnerabilidade. Dependentes da boa vontade, inclusive do governo e da estrutura Estatal quando de tempos em tempos reconhece o enorme fosso que os distancia dos demais. Quando tal reconhecimento ocorre, busca-se estabelecer políticas de redução desta desigualdade, as erroneamente denominadas políticas assistenciais. Políticas direcionadas a “compensar” erros passados e reposicionar essa parcela da população até então invisível. 

Ao extremo, a fome é consequência desta marginalização. Assim, ao tratarmos equivocadamente o conhecimento ancestral afro e indígena e, no que concerne à nossa relação com o planeta, ao considera-lo como fonte inesgotável de recursos a serem explorados, a fome também é resultado desta cultura da marginalização, da exclusão, do silenciamento. No extremo, é colocar os segregados em uma posição tão vulnerável que se esgota suas forças além da capacidade física, na alma, enfraquecendo qualquer possibilidade de reação contra a sua condição. É a exclusão na sua forma mais cruel. 

E, semelhante às leis sobre ensino das histórias não dominantes, ainda pouco praticadas, há legislação nacional e global sobre o direito à alimentação adequada. E a despeito de serem bem formuladas, entram na categoria das leis que são desconsideradas. A consequência é um enorme contingente de brasileiros e brasileiras em situação de fome. A expropriação atinge um nível de crueldade quando impõe a situação de fome a essas pessoas. É uma das consequências da supremacia cultural que vigora no Brasil desde a sua colonização.  É por este motivo que a fome impera através dos tempos no Brasil.


*Docente da Universidade Estadual da Paraíba, pesquisador do FOMERI (Fome e RI), criador do SACIAR (@_saciar). E-mail: [email protected]

Edição: Maria Franco