Apagamento, luta, sangue e terra são elementos recorrentes ao longo do livro de Itamar Vieira Junior
Por Ellen Maria Oliveira Chaves e Marcelly Thaís Marques Ribeiro*
Meu pai lhe mostrou a língua como uma flor murcha entre as mãos, vi sua cabeça balançar num sinal de negação. (VIEIRA JUNIOR, 2019. pág. 14).
É simbólico, dolorido e visceral que Belonísia perca a língua durante a infância, que seja silenciada antes mesmo de enterrar a menarca. Apagamento, luta, sangue e terra são elementos recorrentes ao longo do livro Torto Arado, escrito pelo geógrafo Itamar Vieira Junior.
A narrativa explora uma história ficcional, preenchendo lacunas de uma realidade que, muitas vezes, é negada dentro da literatura contemporânea. Aborda as relações de família, de raça, de servidão, além de questões relacionadas à cultura, religião e ao direito à terra. O autor da obra mergulha dentro da região denominada Água Negra, na Bahia, para nos relatar as memórias do campo e das famílias do local, focando nas irmãs Bibiana e Belonísia.
Contada através do ponto de vista de mulheres fortes - tanto as duas irmãs, quanto a figura da entidade Santa Rita Pescadeira -, essa ficção assume um papel importante ao auxiliar no entendimento da história brasileira. Ela se situa dentro de um Brasil ainda extremamente influenciado pelo colonialismo, pelo preconceito e pelas consequências do sistema escravocrata. O livro permite a lembrança de uma época que possui raízes profundas e que perdura.
Apesar de ficcional, o livro apresenta inúmeras situações próximas à realidade, facilmente relacionadas com a história brasileira. Como, por exemplo, um dos momentos marcantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), ocorrido em 1996, o massacre de Eldorado do Carajás. Cerca de 1,5 mil pessoas acampadas que lutavam pela terra, desocupada e improdutiva, foram atacadas por policiais militares que assassinaram 21 pessoas a sangue frio. A história dos movimentos sociais do campo é marcada pela brutalidade das forças armadas brasileiras, como no massacre de Canudos, ocorrido em 1897.
A situação dos assentados fictícios de Água Negra não difere da dos assentados reais. Desde 1985 até 2020, a CPT (Comissão Pastoral da Terra) registrou 56 massacres que vitimaram 286 pessoas em onze estados brasileiros. Ainda de acordo com a pastoral, em meio à pandemia foram registrados 263 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio. Em 2019, esse número foi de 256 e, em 2018, 111 casos. Além disso, o recente veto de 14 dos 17 artigos da Lei Nº 14.048 (Lei Assis de Carvalho), que prevê auxílio aos agricultores familiares durante a pandemia, demonstra a estatização do silenciamento dos trabalhadores do campo.
Analisar a realidade dentro da obra ficcional de Itamar Vieira é um exercício dolorido. Todas essas questões podem ser marcadas tanto pela luta pelo direito à terra como pelo debate decolonial; apesar de existirem dentro de um ambiente opressor, a resistência persiste em busca da mudança dessas condições. E ao longo das últimas décadas, algumas conquistas existiram, mas sem uma mudança estrutural. A discriminação, o preconceito e o racismo ainda se expressam nos conflitos relacionados à alimentação e ao campo, e são importantes para compreender violação dos direitos humanos.
Assim, a fome entre produtores de alimento, num primeiro olhar, é irônica; analisando profundamente, é crime contra a humanidade. Camponeses fadados a dividir alimento com gado, a compartilhar a pouca produção de suas hortas com oligarcas que poderiam pagar por suas próprias hortaliças e raízes. Corpos desnutridos sujeitos a horas de trabalho afinco sob o sol, tendo como única certeza que o alimento que cultivavam, ao final do dia, não iria para suas mesas. Em Água Negra, a falta de chuvas levou o arroz, levou os grãos, como a correnteza da água leva os descartes embora. Depois, levou a vivacidade do solo: o que se plantava, já não crescia. Os peixes grandes já não chegam às margens dos rios, as famílias dependiam da incerteza da ajuda de um vizinho. As terras já não tinham valor para o fazendeiro. O pouco que os residentes de Água Negra conseguiam salvar de seus pequenos cultivos de subsistência eram levados, as melhores e maiores batatas, pescados e grãos.
Quem produz comida não deveria passar fome. Mas quem produz comida não tem terra, não tem investimento, não tem a voz. Tem a língua ceifada logo na infância, mas nem por isso deixa de lutar contra a onça, utilizando a própria metáfora do livro. No nosso Brasil real, que mais parece um roteiro de série de ficção, não é a água, ou a falta dela que leva algo. É o silêncio dos que se calam e a voz dos que decidem quem vive e quem não, quem come e quem não.
Torto Arado consegue, através da subjetividade, abordar cada um desses temas, permeando as relações familiares, espirituais, as relações materiais e imateriais entre a terra, seus paridos e os que a deram à luz. É imprescindível uma avaliação pessoal: até que ponto somos responsáveis pela perpetuação dessa realidade? Até quando vamos viver em desigualdade e em uma sociedade que não garante direitos básicos? Até quando vamos contribuir para a manutenção de uma sociedade que não defende os direitos alimentares e que não fortalece os pequenos agricultores? Eles seguem derrubando uma onça ou um leão por dia, ainda que com a voz ceifada na primeira infância. Mas... e nós?
*Graduandas em Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e integrantes do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI) da UFPB.
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Edição: Maria Franco