a produção da riqueza é ao mesmo tempo produção de pobreza
Por Rafael Faleiros de Padua*
A paisagem da cidade revela as imensas desigualdades da nossa realidade social. É preciso que consideremos essas desigualdades de modo a pensá-las como produto de nossa história, de processos de reprodução social que devem ser criticados e superados. Uma questão que precisa ficar evidente nesse debate é o fato de haver uma parcela da população que não tem garantidos os seus direitos mais básicos. Por quê uma parte da classe trabalhadora do país não tem a garantia de moradia digna, acesso a uma alimentação de qualidade e regular, acesso à educação e saúde, enfim, não tem concretizados direitos que são conquistas básicas da civilização humana (pensamos essa questão na escala do país, mas poderíamos ampliá-la para a escala do mundo)?
No nosso caso brasileiro, há uma piora substancial nos últimos anos da perspectiva de garantia de direitos sociais, com governos que têm em seu programa a destruição de direitos sociais, numa visão autoritária de uma economia ultraneoliberal que não vê outra prioridade que os rendimentos do grande capital. A rentabilidade dos grandes capitais passa a ser a medida da estabilidade, o que gera crises sociais agudas. Estamos, no Brasil, submetidos a essa regra, que coloca a lógica do rendimento dos capitais financeiros em primeiro plano, colocando toda a produção social a reboque dos interesses de uma pequena classe das altas finanças.
Por mais que os direitos sociais básicos são garantidos na constituição, eles ficam em segundo ou terceiro plano nas estratégias dos burocratas do Estado, posto que a prioridade é a garantia de pagamento de dívidas e juros de dívidas para o capital financeiro. Assim, é uma lógica abstrata que nós da sociedade em geral não compreendemos bem, mas cujos efeitos são muito concretos na vida da população em geral. Os efeitos se revelam na miséria e na fome que vemos crescerem nas ruas das nossas cidades; a falta de moradias e mesmo a produção da falta de moradias, com a piora substancial da vida de uma parcela significativa da população, é parte desses efeitos.
Outra questão que precisamos nos perguntar é: o por quê não há, diante dessa situação de piora nas condições de vida, uma contestação mais forte e substantiva contra essa lógica econômica ultraneoliberal? Primeiro devemos reconhecer que há, continuamente, contestações distintas, organizadas por diferentes movimentos sociais e entidades que lutam pela conquista e garantia de direitos. Mas também devemos colocar nessa reflexão o poder ideológico da lógica dominante de realização prioritária do capital contra a lógica concreta da reprodução da vida. Por diferentes meios de comunicação, redes sociais, internet, etc., e mesmo na educação, em programas estatais e instâncias religiosas, difunde-se a ideia de que o indivíduo é o responsável por sua própria sorte. Nessa visão neoliberal, as conquistas e os fracassos são resultados das ações individuais de cada um, escamoteando e escondendo as determinações sociais das possibilidades e impossibilidades de realização da vida. Em outras palavras, há um combate à dimensão de classe que determina a produção da sociedade com tais níveis de desigualdade e desagregação social através de ideias como empreendedorismo e meritocracia.
Há um conflito de classes que é vivido concretamente e que é preciso ficar evidente e através da consciência desse conflito, pensar em formas de superar as contradições sociais que elas revelam. Dessa forma, é preciso desnaturalizar o que é comumente naturalizado na nossa realidade, como a extrema (e crescente, no atual momento de nosso país) desigualdade socioespacial. Há classes que estão perdendo e outras (as classes proprietárias, de terras e do capital) que estão ganhando nesse processo de aumento da pobreza. Há um mecanismo perverso que precisamos combater que é o fato de que, em nossa realidade, a produção da riqueza é ao mesmo tempo produção de pobreza. Isso tudo é extremamente visível nas nossas cidades e precisamos refletir para transformar essa realidade.
*Professor do Departamento de Geociências da UFPB, coordenador do Projeto de Extensão “Em busca do direito à cidade: ações e debates sobre as lutas urbanas” e participante do FERURB-PB
Edição: Heloisa de Sousa