Não fraquejaremos mesmo depois de séculos de violência
Por Aldenor Souza* e Elisabete Vitorino**
Vamos falar dos nossos saberes, vamos falar de nossos gostos, vamos falar das nossas certezas, mexer com o que está posto e tido como verdade absoluta. Vamos falar sim.
Nós, de Axé, somos múltiples. Somos muites. Muitas e muitos. Somos o que queremos ser do nosso jeito, porque não é fácil ser de um grupo histórico e politicamente excluído. Entretanto, também somos do jeito que ainda dá pra ser, porque não é fácil lidar com mais de 500 anos de dedos apontados contra nós.
Nossas vivências e experiências são, diariamente, questionadas. Afrontadas não por nossa dúvida, mas pelo dedo em riste de quem se julga com poder de dizer como devemos pensar. E nossas certezas podem até ficar abaladas pelo assolamento de dedos, mas temos dedos também. E uma mão forte que prepara a comida de nossos orixás, nkises e voduns. Nossas mãos são fortes e não duvide disso. Caso contrário, você sentirá o peso da mão calejada.
Nós, de Axé, somos ainda um grupo socialmente estigmatizado. Ainda somos majoritariamente pessoas pretas nas piores condições de vida, em subempregos, com subsalários, em periferias. Mas não pense que estaremos para sempre nesses lugares. Temos ocupado também lugares de poder na sociedade como cargos públicos e privados, sendo chefas e chefes. E queremos mais!
Queremos falar das práticas que fazemos. Dos pensamentos que estamos elaborando. Das certezas em construção. Queremos denunciar o racismo e apresentar propostas, não para quem se diz aliade, mas para quem está conosco. E de verdade. Queremos criar uma sociedade na qual nossa forma de pensar, que respeita a coletividade e o poder compartilhado, sejam o norte para a construção de ações políticas e sociais.
Vamos ressaltar a memória de nossa ancestralidade, celebrar a vitória dos nossos que estão nesse plano do Ayé, forçar novas fronteiras na busca de um matriarcado que celebre a natureza, seguindo as vontades de Odudua.
Estaremos aqui, em riste, sem titubear, não fraquejaremos mesmo depois de séculos de violência, porque sabemos que estaremos sempre acompanhades, sempre com a força de nossos que se foram, energizades com as presenças das pessoas que estão entre nós e de nossas ervas, folhas e segredos. Seremos de Axé, com Axé, para o Axé, e para quem quiser dialogar conosco.
Nossos terreiros continuarão ficando mais próximo da natureza porque entendemos que este é o lugar-mãe de onde viemos. Mas queremos estar dentro das escolas, como já previsto na Lei 10.639/2003 que obriga as escolas de ensino fundamental e médio a ensinarem sobre história e cultura afro-brasileira, atualizada em 2008 (11.645/2008), que tornou obrigatório também o estudo da história e da cultura indígena, incluindo a contribuição na formação da sociedade brasileira, conforme a lei anterior.
Queremos estar nas universidades, amparades pela Lei de Cotas nas Universidades, 12.711/2012, que prevê a reserva de 50% das vagas das universidades e institutos federais de Ensino Superior a estudantes de escolas públicas. Esta mesma lei de reserva que estipula, ainda, regras para destinar vagas a alunes de baixa renda, pretes, pardes, indígenas e com deficiência.
Queremos estar ocupando cargos públicos, amparades pela Lei de Cotas em concursos públicos nº 12.990, de 9 de junho de 2014, com reserva às pessoas negras de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
Queremos postular que o nosso saber é legítimo e que o europeu branco vai ter que sentar na cadeira pra ouvir o que temos a dizer. Queremos estar ocupando os espaços legislativos e executivos de construção de poder porque precisamos fortalecer políticas públicas que se façam presentes entre as nossas pessoas. Nós ainda precisamos ser respeitades, seguindo a Constituição.
Vamos falar sim. Mas vamos falar no nosso tempo, no nosso ritmo, no nosso entendimento, no nosso compasso. Você vai escutar. Mas se não quiser escutar, não terá pra onde fugir, porque nossa voz vai ecoar como som do trovão nos céus, como a ressaca das ondas nos mares, como o canto das revoadas que cruzam o céu ao nascer e ao por do sol todos os dias. A lógica escrota que nos massacrou e nos massacra diariamente é difícil. Vai por nós, nós entendemos desse massacre. Mas vamos organizar nossa revolta e prepará-la num tabuleiro para servir no tempo certo.
Nós, de Axé, vamos falar. E, se for necessário, vamos gritar.
*Servidor Público
**Assistente Social
*** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB
Edição: Heloisa de Sousa