É preciso tecer uma história que remonte o protagonismo social da população negra
Por Cicera Nunes* e Rafael Ferreira**
Como desenvolver uma pedagogia antirracista que nos (re) conecte à ancestralidade e ao legado africano presente na história e cultura local? Qual o papel da tradição oral e da memória na releitura da nossa relação com os referenciais históricos e culturais da população negra? A superação da lacuna histórica a respeito da nossa relação com o continente africano, bem como a compreensão da complexidade das relações étnico-raciais traz uma reflexão importante sobre a necessidade da construção de uma base epistemológica que rompa com o entendimento da Europa como o centro da produção de conhecimento, e considere a produção intelectual dos povos africanos, da diáspora negra, dos povos indígenas, bem como os conhecimentos advindos da sabedoria tradicional, como fundamentais para uma releitura da história do Brasil.
No Parecer CNE/CP 2004, que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, está colocada a necessidade de uma ampla reformulação curricular e uma política de formação dos profissionais da educação, a fim de que estejam preparados (as) para que compreendam a educação como caminho indispensável na superação das ideologias racistas e na promoção de ações que positivem a memória dos povos africanos, afro diaspóricos e indígenas. Nesse contexto, é fundamental um compromisso efetivo e contínuo com os processos de formação dos profissionais da educação de todas as áreas do conhecimento que possibilite o (re) conhecimento das africanidades e afrodescendências que estão presentes na nossa história e na nossa cultura.
A cultura de matriz africana inserida no contexto afro diaspórico nos territórios brasileiros demarcou os espaços com as ancestralidades, a oralidade e a tecnologia africana sinalizada na organização social e na constituição dos símbolos materiais e imateriais dos lugares. Refletimos a partir da relação desses saberes com o continente africano na sua expressividade sociológica, filosófica, histórica e na complexidade dos conhecimentos tecnológicos empreendidos no espaço geográfico, formando as africanidades, apontando possibilidades educativas e pedagógicas que estabeleçam bases teóricas-metodológicas para se repensar os processos de formação docente.
Dentre as africanidades que se encontram no espaço geográfico destacamos o urbanismo, a dança, os bairros negros, as organizações religiosas, os territórios quilombolas, a religiosidade de matriz africana, os movimentos negros. No que se refere ao urbanismo, encontramos técnicas construtivas e uma divisão no trabalho que remonta um legado africano no contexto mais amplo do continente de África, no qual foi transferido para o Brasil. É importante atentar-se para o conceito de afrodescendência que parte de uma revisão na base sociológica da formação dos lugares durante o período afro diaspórico (CUNHA Jr., 2001). A afrodescendência como fator articulador da memória e identidade que, segundo Juliana Souza (s/d, p. 05), nos ajuda a repensar os marcadores históricos, sociais, educativos, artísticos, de organização social, de memórias e narrativas como fatores de afirmação identitária. Destaca a autora: “Como construir a ideia de pertencimento à cidade, à comunidade, ao bairro quando não se tem nenhum marcador de ligação com o passado seja ele breve ou longo?”
A oralidade também exerce um papel importante na constituição das culturas africanas no Brasil. Através da oralidade dos (as) mestres (as), das lideranças religiosas e das lideranças das comunidades tradicionais é possível construir uma ponte para caminharmos e acessarmos o entendimento sobre a complexidade do pensamento negro. Em muitos momentos necessitamos permanecer apenas na escuta para sistematizarmos os conhecimentos transmitidos pela oralidade, pelos sentidos comunitários que estão ligados diretamente com a natureza e com os recortes territoriais. Refletimos que há uma experiência histórica específica da população negra brasileira que se relaciona de forma permanente com a criação e reelaboração das suas culturas e que devem fundamentar os processos de formação docente e os currículos escolares.
É preciso tecer uma história que remonte o protagonismo social da população negra no contexto territorial a nível local e global, ampliando a compreensão sobre as diversas formas de expressividade, sejam no âmbito do urbanismo, nas organizações de irmandades religiosas, através de lideranças comunitárias, nas tecnologias do couro e da carpintaria, no trabalho dos ferreiros, nos (as) mestres (as) da cultura, mestres de açúcar e de rapadura. Acreditamos que a construção de um novo olhar sobre as culturas africanas deva repercutir nas diversas áreas da produção do conhecimento. É uma responsabilidade e um compromisso da esfera política, das universidades e escolas em dimensionar formas que possibilitem remontar a história africana e sua complexidade sistêmica de se relacionar com o mundo.
Destacam as orientações da Resolução Nº. 01/2004 do Conselho Nacional de Educação que ações de enfrentamento ao racismo devem ser observadas pelas instituições de ensino que atuam nos programas de formação inicial e continuada de professores (as). Como parte importante desse processo formativo o documento destaca no § 4° que: “Os sistemas de ensino incentivarão pesquisas sobre processos educativos orientados por valores, visões de mundo, conhecimentos afro-brasileiros, ao lado de pesquisas de mesma natureza junto aos povos indígenas, com o objetivo de ampliação e fortalecimento de bases teóricas para a educação brasileira”.
Lima (2007, p. 58) informa que “[...] as propostas pedagógicas desenvolvidas pelo Movimento Negro, no início da retomada dos movimentos populares, na década de 1970, são estratégias de continuidade de uma trajetória de luta e de resistência do povo negro que remonta aos quilombos, nos terreiros, nas irmandades, nos grupos, associações, imprensa negra, até as organizações atuais do Movimento Negro (MN) [...]”. Para agir no campo da formação docente, destaca Lima (2007), é preciso que a universidade repense as suas práticas e, com isso, problematize os paradigmas que historicamente têm norteado a educação e a sociedade brasileira.
É nesse contexto que as instituições de ensino superior precisam repensar as suas ações institucionais na implantação de um amplo programa de ações afirmativas aliado às ações de pesquisa, extensão e ensino numa perspectiva de rompimento com os paradigmas eurocentrados e de compressão da importância dos conhecimentos produzidos nos territórios negros, tendo como princípio a dimensão da ancestralidade, atendendo às demandas históricas dos movimentos negros na construção de uma educação antirracista. Como parte importante desse processo refletimos o lugar da formação docente na relação com os referenciais históricos e culturais do lugar fortalecendo a relação de pertencimento com as africanidades.
Para saber mais:
CUNHA Jr., Henrique. Africanidade, afrodescendência e educação. In.: Educação em debate. Ano 23. v. 2. Nº. 42. Fortaleza: 2001.
LIMA, Ivan Costa. Universidade, movimentos sociais e relações raciais: educar para as novas relações sociais. Padê, Brasília, v. 1, n. 2, p. 52-72, jul./dez. 2007.
SOUZA, Juliana de. Afrodescendência: identidade desvelada na memória. In.: III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS). Dilemas e desafios na contemporaneidade. s/d.
*Cicera Nunes – Doutora em Educação e Docente vinculada ao Departamento de Educação da Universidade Regional do Cariri – URCA.
**Rafael Ferreira – Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais.
Edição: Heloisa de Sousa